Por Breno Lacerda
Dentre os escritores hispano-americanos mais criativos do século XX, o nome de Gabriel García Márquez surge num cenário de mitos e histórias ancestrais. Os anos de 1960 e 1970 são cruciais para sua ficção, a qual seria coroada com o Nobel em 1982. Gabo, como chamam-no os seus leitores, criou uma épica alegórica da história dos latino-americanos por meio de seus livros. Foi tentando imitar o estilo da avó materna de contar “causos” regionais e até recontando muito deles, afirmação feita a Plinio Apuleyo, jornalista e amigo pessoal; que nasceu o mundo primevo e fantástico de Cem anos de solidão, Os funerais da mamãe grande, O outono do patriarca, A revoada e A incrível e triste história da cândida Erêndira e de sua avó desalmada. Narrativas telúricas, insólitas, mágicas, chamarizes aos olhos do mundo.
Livros escritos em uma época de efervescência política na parte sul do continente Americano, onde forças antagônicas disputavam o controle ideológico e territorial das antigas colônias europeias. O poder imperialista, representado pelos Estados Unidos da América, fomentava regimes ditatoriais e bancava a dólar antigas oligarquias naquilo que eles se referiam de terceiro mundo. A União Soviética, força oposta aos yankees, possuía um ideal de comunista de distribuição de renda igual e abolição das classes opressoras. Embora se saiba hoje das contradições do regime, os ficcionistas latino-americanos tiveram uma influência preponderante dessa ideologia, pois se sentiam violentados pelos ditadores. Entre eles, García Márquez aparece em destaque na arte e no jornalismo. Longe de produzir uma literatura panfletária, sem imaginação, ultra materialista, o premiado colombiano escolheu as vias metafóricas e alegorizantes para combater a opressão.
Ante a pequena contextualização do autor e sua obra, digamos, na linha histórica da literatura hispano-americana, devo limitar os pontos de interpretação sobre os quais discorrerei minha análise. Ao ler o conto supracitado, observei duas temáticas, a meu ver, importantíssimas na escrita do autor em questão, a saber: a violência e os diálogos intertextuais travados no núcleo do conto. A violência sempre como componente fundador de uma civilização colonizada, construída a partir de genocídios, aculturação e escravidão. Já as conversas intertextuais são elos entre a província e o espírito universalista do ocidente, mostrando o caráter abrangente da literatura produzida num local marginal.
O conto traz a convivência de duas mulheres com parentesco sanguíneo. Erêndira, protagonista, é neta de uma velha sem nome, mas com muitos adjetivos curiosos. Desde o começo a relação de ambas se mostra utilitária, na qual a jovem é explorada; ou melhor; escravizada pela matriarca. Aqui há um efeito causador de sentimentos destoantes no leitor, pois se espera um cuidado especial da idosa, um zelo materno ante a falta de amor dos pais, a cândida Erêndira é órfã. Essa ligação é quebrada com o trato escravocrata da família. A moça cozinha, lava, passa, alimenta os animais e não tem descanso, ao ponto de o narrador dizer que ela trabalhava acordada. Não bastasse essa condição de escravizada, uma situação tornaria a condição dela muito pior. Em uma noite cheia de mistério, a desgraça recai sobre sua vida, então o candelabro com velas acesas cai num pano e causa um incêndio devastador, pondo em ruínas toda a mansão.
Com a casa em ruínas, Erêndira se vê em dívida de 1 milhão de pesos com a sua avó, que não demonstra piedade, pelo contrário, ela quer a restituição das suas posses. Para tal, a idosa não abre mão de prostituir o corpo de sua neta, prática bem conhecida, pois no passado fora marafona resgatada do cabaré pelo velho contrabandista Amadís. As cenas de a partir desse momento são extremamente violentas. Erêndira é possuída sexualmente por tostões miseráveis, submetida à prostituição em massa do seu corpo, a vagar nômade por diversas cidades.
No conto a violência é sempre constituidora da civilização. Antes mesmo da venda do corpo de Erêndira, percebe-se que a morte, a terra tomada no braço, o contrabando (uma violação da lei) forma a sociedade incipiente da região. O narrador constrói um cenário desértico, flutuante, escondido entre massas milenares. Mas, veja, o único sinal de humanidade visível no lugar é a mansão dos amadises. Inclusive com artigos de luxo trazidos do contrabando. A aquisição da moradia foi por meio de peleja contra uma facção rural dona da localidade, inclusive, ocasionando a morte dos patriarcas. Os objetos da casa foram adquiridos burlando a lei, uma espécie de violência jurídica.
O deserto, ou seja, o nada é o lugar para (re)construir outra civilização. Mais uma vez ela é fundada a partir de relações violentas. O corpo tenro vilipendiado em troca do dinheiro, levando a exaustão uma menina sem infância. O conto diz que as filas para desfrutar o corpo de Erêndira eram imensas, davam voltas no quarteirão. A localidade aqui é o deserto, lugar árido, cheio de pó como nos é narrado. Porém o conglomerado de humanos, as relações sociais, as primeiras daquele ambiente, dão-se no seio da exploração sexual de uma manceba frágil e indefesa. A obra alude à formação das nações colônias da América, a qual se formou com base em estupros, perversões e coito em troca de escambos. Daí surge um povo altamente sexual, violento e utilitário em seu convívio. O enredo também toca na exploração da Santa Sé simbolizada pelos missionários católicos e o convento, forte ideológico da igreja.
Os missionários oprimem as indígenas no convento, descaracterizando suas vestimentas, sua língua e dando-lhes trabalhos bestiais. Erêndira até se adapta à instituição, mas é traída quando lhe oferecem um casamento arranjado com um silvícola comprado pela avó. Aliás, os nativos são escravizados pelos jesuítas e pela velha avó. A cada página eles vão ganhando mais marginalidade, bem como houve quando os negros africanos chegaram para assumir os trabalhos braçais nas lavouras de açúcar, os indígenas foram sumindo da cultura nacional.
A narrativa dialoga com a Odisseia de Homero, ao trazer o personagem Ulisses, mesmo nome do herói grego. No conto ele liberta Erêndira do jugo de sua avó. Aqui ele pode ser entendido como um salvador que pode levar a protagonista da história ao encontro consigo mesma, com uma liberdade nunca experimentada. Isso é concretizado, quando ele mata a megera, mas novamente a civilização teria de começar do zero e com base numa violência, num ciclo sem fim. A escolha de Gabriel García Márquez foi outra, vejamos mais adiante. A ficção ainda conversa com a passagem bíblica de Jonas e a baleia. A avó de Erêndira não é nomeada por um apelido próprio, de batismo, mas é muito comum os personagens referirem-se a ela com adjetivos inusitados; um destes é o de baleia. Do começo ao final do conto é atribuído esse nome a ela, baleia branca, baleia enorme, até Ulisses chama-a assim na tenda.
Assim como Jonas é retido no estômago da baleia por recalcitrar seu destino de profeta de Deus, sofrendo aquela existência solitária e úmida até aceitar sua sina; Erêndira tem seu destino preso à barriga de sua avó, que a mantém encarcerada numa condição aviltante de prostituição. Somente quando aceita seu destino selado na faca de Ulisses, a mocinha consegue se soltar dos grilhões da baleia branca. É um ponto alto do livro, pois trava uma conversa poética desses mitos fundadores da cultura ocidental.
García Márquez escolhe fundar a civilização na liberdade dos povos latino-americanos, pelo menos um apontamento de esperança, por isso Erêndira deixa Ulisses a chorar no sangue de sua avó, caso contrário a sociedade a partir dessa união se formaria por meio de sangue e traição. Então ela se imaterializa na liberdade, corcel de esperança de um povo violentado há anos pelo opressor.
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