Por Matheus Gabriel
Capítulo 4 - “A realidade do senhor são suas vestes e tamancos”
Se considerarmos a arte e seu desenvolvimento multifacetado a partir de sua suposta essência mimética - de repristinação esteticamente veiculada à realidade -, a Travessia de Leandro conduz, em representação escrita, a uma natureza similar do real. Melhor dizendo: a um nascimento similar, empírico e constatável, menos dos indivíduos que o vivem do que a totalidade maior em que essa vida acontece.
Contudo, considerando que ambos são mediados entre si, reprisa o acontecimento efetivo do "mundo vivo”, dos desdobramentos “de vida” e reprodução desse “mundo”, mesmo que, ao leitor, a trajetória narrada do vigário Símile não corresponda imediata e imageticamente a sua própria ou a algo que está acostumado em sua própria pele. Quer dizer, a falta de identidade espelhada com o protagonista, que se envolve em certas tramas e conflitos de espécime peculiar e restrita a alguém de sua posição social no processo produtivo, não exclui o elemento de realidade da obra. Porque mesmo que “sua realidade” (de Símile) não seja imediatamente a minha ou a sua, para nós, essa ainda é nossa realidade: na qual os “protagonistas” do mundo desfrutam em gozo a penúria dos que “não estão nessa” realidade.
A caricatura muito bem construída do corifeu burguês desalentado, cuja aventura onírica não protagoniza tanto o texto quanto a mensagem implícita deste, serve de perfeito invólucro ilustrativo, de (con)formação analógica e alegórica, à denúncia da espoliação generalizada típica do sistema do capital e dos “padrões sociais” e “problemas” daqueles que estão no topo. Nisso, opera como um receptáculo, uma forma, capaz de comportar e transmitir a quem lê as facetas cruas do espírito do nosso tempo. Vali-me de expressões e trejeitos de escrita do jovem Lukács, leitor de Kassner, a quem ressalta a autoria de uma importante consideração acerca da construção literária e do desenvolvimento artístico: o desvelamento dos tipos humanos da figura do artista, o poeta e o platônico, o primeiro arraigado em um ímpeto incendiário de construção apaixonada e incontrolável e o segundo em uma compostura serena que busca precisão e certeza no momento de transmitir as ideias. Um é criador de homens, o outro, dissecador. No texto dedicado ao crítico tcheco, ao final de sua exposição, Lukács aduz que, a partir dos graus de mistura e relação entre o poeta e o platônico em um dado escritor, o estilo e o desenvolvimento tornar-se-ão encadeados mais em um sentido do que em outro – ou mais ao espírito, ou mais à exatidão. Em um momento anterior do anseio a Kassner, ressalta que uma das qualidades essenciais do artista (e aqui, claro, incluímos os escritores) é a capacidade da forma. Somente a forma é capaz de arrefecer a flâmula meta-determinada e inconstante do poeta e, ao mesmo tempo, irrigar à vida as determinações hipostáticas e quase conceituais do platônico. A grande virtude do artista é saber (con)formar.
Tendo por base essa observação de Lukács, o desenvolvimento de O Fantasma e a Travessia já permite averiguar os fulcros artísticos do autor. Mas aqui a arte, como imitação da natureza, traz à luz essa “natureza” (o real) para lhe escancarar o velamento e pô-lo sob o céu - afinal, o céu, como indica misteriosamente o Heidegger tardio, é o “espaço de emergência da terra”. Aqui, a energeia do poeta não se dá tanto a partir de uma desorientação autoprovocada pelo potencial reprimido de ser ou por uma necessidade de universalização abstrata, mas se dá, em verdade, pelas vigas do real, por uma universalização concreta, a partir da aferição e descrição do movimento do todo, que, por si só, irradia e tremula infindavelmente sob contingências inacabáveis e contradições latentes. O platônico torna esse caldeirão de relações e acontecimentos da totalidade em elemento visível, determinável e compreensível. Nisso se equilibra em ponto neutro entre o poeta e o platônico de Leandro: singulariza em palavra e narrativa a universalidade efervescente de “complexos complexificados” das estruturas do real. Talvez esse escrito não sirva como romance dotado de misticismo, ao menos não nos padrões de um Goethe, ou como um conto anti-heroico de questões existenciais, como em Sartre ou Camus. Pelo contrário, é um verdadeiro manifesto metalinguístico de denúncia deste mundo putrefato pelas ações e consequências dos “protagonistas” do sistema do capital, mesclando alegorias e aventuras de personagens como meio artístico e eufemístico de erguer as armas crítica - isso se torna mais claro ainda quando se pensa no conto dos espantalhos no capítulo anterior, a retirada do véu da ignorância do leitor sobre a introjeção de espantalhos pelos "de cima” e a lucratividade obtida com a ideologia e a mentira como políticas
institucionais de poder.
Aliás, a utilização a todo momento de figuras de linguagem, alegorias e metalinguagem, tiradas do plano imediato de artefatos estilísticos, funciona de modo amplo nas construções semânticas e reflexivas propostas de antemão pelo autor. Diria que, com vistas à retratação da realidade – que é, em uma análise mais completa, um conjunto de complexos mediados e dialeticamente articuláveis e influenciáveis entre si -, e considerando sua impossível cobertura integral em construções fechadas de narrativa e estória, que tendem a reduzir o grau de fungibilidade hermenêutica a uma direção delimitada pelas estruturas da construção, opera como catalizador ao abarque do máximo de facetas compreensíveis dessa totalidade. Nesse caso, somos impelidos a contribuir mais diretamente com o sentido a partir de nossas próprias experiências e bagagem de vida dentro dessa totalidade representada, o que permite alçar níveis mais transversais e horizontais de compreensão dessa totalidade a partir de diferentes “pontos de vista” - ou, em termos gadamerianos, a partir de diferentes pré-compreensões, cujo pressuposto ontológico é a inserção do intérprete na realidade conhecível, que lhe lega, desde sempre, suas possibilidades de compreensão. Afinal, como dito outrora, não é essa a nossa própria realidade? Renuncio a mais comentários sobre as escolhas de escrita do autor.
De igual modo, o foco central desta proposta de interpretação, para além das indicações gerais de caminho, imprescindíveis a uma aproximação mais específica de um determinado ponto do texto, é o seu capítulo 4, que, assim como os outros, carencia de um título específico de punho do autor. Entretanto, talvez se possa deduzir, apesar do risco de imprecisão nos termos e ideais (naturais a qualquer proposta interpretativa), um título possível, que corporifique tanto o referido capítulo quanto o espírito geral do texto, bem como a interpretação a eles dirigida. Articulando, assim, a particularidade da estória contada no capítulo 4 com o texto em sua totalidade, e desta totalidade representacional à totalidade efetiva a qual se reporta.
O capítulo 4 desta imago cotidie, dentro da construída arquitetônica densa e enigmática propositalmente, e ainda assim, em muitos tempos, sutil e convidativa, redireciona a luz da clareira da denúncia, agora de modo mais violento e sugestivo, não privilegiando a narrativa da figura pitoresca de Natus Símile; a luz enfoca-lhe a persona apenas para revelar e desenvolver a sombra por detrás, quer dizer, aqueles que sempre estão na sombra, à margem, por detrás desses “protagonistas”. Essa mudança não mudada de direção na narrativa, acompanhada de um corte abrupto dos acontecimentos do capítulo 3 até este, destaca o elemento-edificante da Travessia, que é sua total falta de linearidade e noção de tempo. Aqui realmente se encrusta a ruptura com o projeto clássico de narrativas encadeadas logicamente em uma perspectiva de tempo determinada. Por um lado, já se justificou essa escolha pelo fato de melhor convalidar as intenções reflexivas e universalizantes do texto. Mas, por outro, destaca a essência da experiência da possibilidade do sentido – dependente de uma relação dispare com o tempo - frente ao conforto de noções “temporalizadas” e de fácil apreensão - e na “vida real” também, não é assim? Se se trata de uma aproximação onto-hermenêutica de uma “temporalidade” frente a uma “temporalização” (o que acolho particularmente com ressalvas pelo meu conhecimento do autor) ou uma desconsideração materialista da categoria- tempo, não convém responder. O efeito é o mesmo: somente se extrairá algo do texto se a ele se entregar, não podendo esperar facilidade e nem mesmo subsumindo a compreensão dele à ordem de leitura dos capítulos. Da perspectiva de protagonismo do personagem-receptáculo no capítulo 4, cabem alguns breves comentários reflexivos.
Ao chegar até a comunidade, surpreende-se, com desterro, que nenhuma das figuras ali presentes, aos seus olhos, almas de animais e menos humanos do que aqueles de sua estirpe, foi ao seu encontro polir-lhe o ego ou humilhar-se por pequenos favores. Na verdade, a indiferença com sua pessoa na trama, fruto de outro acontecimento a ser narrado, que pode ser vista por nós em uma consideração pertinente. Com certeza, em outro contexto fático que não aquele em que foi ao subúrbio, o “tapete vermelho” da recepção calorosa seria estendido por alguns dos viventes daquele “outro lado da mesma moeda”. Mas se ele pensava que, por sua posição na casta dos “melhores sobreviventes” da selva do capitalismo periférico - crença abusivamente reforçada por seu pai desde a infância - vide Capítulo 1 - e pretensa fama no mundo da exploração, seria recebido por todos com honrarias comparáveis a de uma deidade, iria provavelmente sentir a amarga decepção. Novamente viria uma boa indiferença da maioria dos viventes da periferia retratada.
A indiferença para muitos “do lado de cá” em relação aos ricos (com sua existência e permanência) não advém exclusivamente das suas pessoas, dos seus status e da propaganda ideologizante que se tenta pregar sobre suas posições de sucesso e autorealização - para estes problemas, deixemos o biógrafo de Símile responsável por inventá-las. Ninguém são e consciente de sua historicidade e vida já deixou ao menos uma vez de se indagar por que certas pessoas deste mundo tão desigual e lastimável podem desfrutar de tudo o que a presente quadra da história pode oferecer em termos materiais e libidinosos e, para outras pessoas, relegam-se a miséria e a dor. Se a “indiferença”, na prática, é real, subsiste e em boa parte como expressão do “autoanestesiamento”, da perda da sensibilidade com a realidade em que se está posto, ou melhor, do realismo; do sentimento de que a revolta e o descontentamento são inúteis; de que a realidade sempre foi essa e não há como ir muito além dela fora do escopo do atiramento de migalhas. Para os “conscientes” desta impossibilidade imediata, manifesta-se bem como resignação de classe. Tentar ir além disso é inútil e só gerará mais dor e sofrimento aos que tentarem. Buscar enfrentar o “sistema do capital” é convidar a morte para andar junto de si. Em alegoria bem abstrata, mas sugestiva, se pensarmos no sistema orgânico (e inorgânico) de autoreprodução do capital, a insurreição contra o “bom funcionamento do organismo”, sendo de dentro, é comparável a uma célula cancerosa ou unidade de cancros; e todos sabem o que o corpo faz com as células cancerosas: eliminam-nas de prontidão e com velocidade impressionante. Nisso, a inação é constante. O ódio e o sentimento de indignação tornam-se tristeza e contentamento – no máximo, guarda-se a revolta para si mesmo. E assim o mundo anda. O sistema orgânico anda bem e saudável. E as ditas “células cancerosas” já estão mais temerárias e não irão aparecer. Resigna-se. Com isso, as expressões imediatas e palpáveis do contexto de desterro material dos moradores periféricos, que geram consequências práticas e afetem seu modo de vida e suas relações interpessoais, são mais importantes e relevantes para eles do que a estada breve de um “filho do outro lado” ou de “representantes da outra voz”. A vinda destes sempre é comum, e seus objetivos já de costume conhecidos. Quando não se aproximam para renovar os espantalhos ideológicos e alastrar conformismo ou simplesmente exterminar os jovens pobres, o fazem para “ver a pobreza de perto” e “contribuir” (paradoxalmente) com alguma medida filantrópica egóica de exaltação de si ou de alívio momentâneo de consciência Esta última hipótese parece ser o que Natus estava fazendo ao dirigir-se junto ao “antigo comandante” a uma visita à comunidade. Não esperava, entretanto, o roubo de seus holofotes (ou melhor, o direcionamento a ele para mostrar a sombra) por um acontecimento trágico, mas tão comum àquela realidade quanto o desdém advindo por pessoas da classe do protagonista: a morte de uma jovem ativista da comunidade, defensora dos direitos e causas daquela gente. Por seu “barulho”, foi vista como célula cancerosa; o resto, sabemos. Cilena Almina a seu nome. Uma filha do seu, que transforma a vida. Seja a personagem nominada. O que é muito comum, em casos como este, mesmo que aqui fictício, é a quantificação equivalente em estatísticas institucionais, tão (i)mensuráveis quanto o valor de uma mercadoria - e não somos todos mercadorias?
A comoção gerada por seu assassinato brutal, assim como o ímpeto revoltado que provirá, é assistida diretamente por Símile. Os moradores, amigos e conhecidos de Amina, reúnem-se frente a seu corpo. A matriarca daquele local, cuja figura representa a personificação do espírito objetivo daquela comunidade (gerações e gerações de oprimidos, relegados ao afastamento e às repulsas do governo e da sociedade local, obrigados a lutar contra a pobreza e a violência por si mesmos, sem contar com “o organismo inatural”), discursa a todos, e sua voz, num misto saudoso e indignado, não fala somente por Almina. Ali está a voz de exaltação aos heróis reais, cujas vidas muitas vezes são ameaçadas e mesmo findas pelo simples fato de quererem e agiram para a mudança das estruturas rígidas de descarte social. Brilhantemente Leandro escolhe Semene como a porta-voz dos falecidos, que fala em nome dos inominados e quantificados heróis do dia a dia, mortos por seu desejo de mudança e que nenhum de nós jamais saberá a sua história - não de um Deodoro da Fonseca, militar de patente que, por meio de golpe, instaurou a República Burguesa-Colonial, bonapartista e de exclusão das massas de quaisquer processos de decisão e direção nacionais, servindo diretamente aos seus interesses. Não mesmo. Herói é ἥρως (hērōs), “aquele que defende”, “aquele que protege”. E foi isso que Semene exaltou em suas palavras: a defesa e proteção destes “heróis do povo” que, diferentemente de boa parte do panteão dos “heróis” nacionais, veio das massas descartadas pela nação e para estes lutou. E isto Semene bem expressa ao final de sua fala, ao expressar o desejo de encontrar o assassino de Amina e por-lhe fim a vida e exaltar a falecida guerreira. “O quanto ela grande e o quanto ele é pequeno”. É fácil aparentar força quando se defende o interesse dos fortes e poderosos, recebendo destes a chancela para o extermínio e repressão dos mais fracos. O difícil é estar do lado dos fracos, dos descartados pelo sistema, e defender-lhes a dignidade contra quem a usurpa e dela se aproveita em próprio benefício. Essa é a verdadeira força, “ser grande” é isto. Dispor-se a apanhar e morrer pelos surrupilhados e esquecidos pelo capital.
Mas o ponto específico de minha tentativa de interpretação, junto, claro, à morte destes heróis na figura espelhada de Almina, é a consequência que dela advém. Pois, logo após o fim do discurso de lamento e ira de nossa matriarca, emerge uma grande cólera coletiva. Todos estão perplexos e descrentes com aquela violência brutal, contra a política institucional do massacre dos mais pobres. Logo surge a incitação e a confluência para uma revolta geral dos oprimidos. O objetivo é claro: fazer “o mesmo” com um deles e deixar um recado aos mandantes e à sociedade como um todo. E, além das armas da crítica, a crítica das armas necessitava se efetivar naquele momento. E todos os populares assentiram, enfurecidos e transtornados com mais um exemplo da política da morte. Eis que um grupo de pacifistas advoga contra a insurreição armada. Os detalhes do diálogo entre seus líderes não é o objeto central da reflexão e nem poderia ser expressado em força e profundidade substanciais por um comentário breve. Sugiro a leitura direta desse trecho brilhante da obra. O que me chama a atenção, e por isso remeteu-me ao desejo de escrever estar linhas é, a grande denúncia feita por Leandro, imperiosa demais para ser mantida sob velamento e conjectura. E seu foco central, que retoma indiretamente os momentos anteriores e conjuntos da narrativa, é este diálogo. Porque ele não expõe uma “narrativa ficcional” e nem uma lição ficcional, sendo isso ressaltado desde a epígrafe deste escrito. Justamente por isso que deve ser observado: pois é uma lição prática a ser ouvida; é à nossa realidade que fala. Escutemos o argumento central tecido pelo líder dos pacifistas versa sobre a dita impossibilidade material direta de uma insurreição contra os poderosos. Diz que não dispõem de forças suficientes para um embate direto com a poderosa maquinária estatal da violência, e que quaisquer represálias pelo assassinato, ainda mais armadas, serão respondidas com o dobro de intensidade por aqueles. “Da dor se gerará mais dor”. “Não haverá mais por quem chorar nem quem lute por eles”. Busca convencer os populares a condenarem e abandonarem o movimento armado com uma súplica de “retorno à consciência” e à racionalidade. Diz que o único meio “real” de luta é a via institucional democrática e protestos localizados, buscando atenção e oportunidade de voz para expressar os anseios coletivos daquela gente. Talvez seu “excesso de consciência” apenas diga que não tem consciência alguma da real situação e das capacidades de força de uma mobilização geral. O líder dos revoltados apenas constata tudo aquilo que já sabemos: a política da morte, a espoliação, a invisibilidade estatal proposital, o abandono à violência, a negação dos direitos básicos etc. Sua proposta de revolta armada era justamente por a descrença na via institucional, fruto de experiências empíricas passadas, e o sentimento feroz contra aquela realidade. Em verdade, o assassinato de Almina deve ser visto como em uma face de Jano: por um lado, personifica uma realidade extremamente maior e mais complexa, cujo acontecimento particular só ganha seu pleno esclarecimento sob vistas da universalidade exterior e imanente a ele, e que, por óbvio, seria objeto de reminiscência geral por todos aqueles indivíduos revoltados; por outro lado, ainda com vistas a essa universalidade, é a partida de um dos seus, de um daqueles que, vindo do mesmo chão, pisando na mesma lama e comendo o mesmo pão e dividindo as mesmas alegrias e dores, viveu e lutou por eles e para eles, transmitindo, além da já constatação do abandono pela sociedade, a unidade de seus objetivos comuns a partir da diversidade daqueles indivíduos, de modo que somente eles poderiam lutar por si, pois todos os abandonaram e relegaram à própria sorte. Não é o Estado ou punhado de burgueses que lhes iam diminuir o sofrimento, senão por suas próprias mãos.
Essa posição era clara no discurso do líder dos revolucionários. Ressalvadas as questões materiais de contingente de pessoas, representava um ímpeto comum e reclamante de mudança e justiça. Se justiça é “dar a cada um o que é seu”, como o típico direito burguês apregoa e positiva, então que seja dado aos assassinos aquilo que “realmente lhes seja seu”. Mas foi rapidamente ataca pelo discurso institucional dos pacifistas, que arrolavam pretensões institucionais sob o solo do “realismo” da situação.
O “realismo”, aliás, é a ontologia social dominante e introjetada psíquica e existencialmente no presente estágio do capital, como reforçou Mark Fisher. É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. É mais fácil (e mais cômodo) imaginar que o aparelho do Estado irá esmagar aqueles que se insurjam contra sua ordem estabelecida. É mais fácil imaginar o privilégio de uns e sua perpetuação do que o seu extirpamento. O realismo é a ontologia da hipóstase da ação. Operando a ideologia, no sentido do Lukács tardio, como prévia-idealização do ser social capaz de gerar fundamento à práxis concreta, o “realismo” opera como prévia-idealização e fundamento à ossificação do Outro, da mudança, e reprodução do previamente dado; um sustentáculo de interesses aquém dos da grande massa social. A “consciência da impossibilidade”, na forma de “realismo”, nada tem de real, pois nem sequer compreende a própria articulação do ser social que lhe dá (con)forma tal pensamento e tal inação, e o mesmo que lhe revela como possível agente de transformação, subsistindo a partir de um inventário referencial “ideal” de uma realidade acabada histórica e categoricamente sob os assentos da reprodução material-social posta. Chegamos ao “fim da história”, e desligaram o moto-imóvel do movimento. Lukács revela a impossibilidade de uma práxis pensada a partir da compreensão total das infinitas categorias mediadas que fornecem a base real e necessária de um determinado estágio do ser social. Contudo, depreende que a própria liberação do ser social à sua rearticulação conformadora – a apontar para uma outra direção - depende justamente de um certo grau de apreensão do ser real, de modo que, quanto menos se pode dele apreender e entender, maior e mais significativo será o papel da ideologia na conformação do complexo de complexos e direcionamento a determinidades próprias, que, em muito, atendem a interesses.
Uma real consciência “do real” exige justamente a alteração qualitativa do modo categorial de apreensão e relação com a totalidade, advinda da própria realidade inserida. Mais ainda: exige a consciência mediada da necessidade do modo ideológico de operação. Se a ideologia opera em um sentido, é porque ela é necessária ao movimento reprodutivo do real naquele sentido. Sendo ideológica, em grau maior ou menor de força de conformação, atende a certos pressupostos-ideais de mundos, que tendem a refletir interesses. Sempre operará com mais intensidade quando não se puder apreender o ser real, que, por suas próprias determinidades, revelará um caminho de conformação mediada específico e necessário das categorias sociais a partir do que é e revela em seu sendo – na presente quadra do ser social, a potencialidade dos meios produtivos de satisfação das necessidades gerais, sua apropriação e necessidade de (re)apropriação coletiva ao benefício de todos. O interesse na conformação histórica e socialmente determinada no sentido atual não diz respeito necessariamente ao caminho de conformações sociais a serem adotadas pela apreensão das categoriais sociais do atual estágio do ser social, mas sim de uma conformação já previamente dada e tendente a reprodução por certas conformações –pensemos no exemplo da relação com a natureza; o ser social já revela categoricamente a necessidade de uma nova relação mediada entre esta e o todo social, muito embora a conformação social dada interaja ainda com a natureza sob os meandros da conformação sob formas-sociais vigentes, o que, inevitavelmente, levará ao seu esgotamento e consequente insustentabilidade da vida. Nisso reside “a idealidade do realismo”, visto que, como Lukács pensa nos Prolegômenos a ontologia do ser social, a ideologia, em graus extremamente elevados, acaba virando uma Outra realidade sobreposta ao ser social, obscurecendo-o, mas que, como necessária à sua reprodução, acaba por integrar-lhe, funcionando também como seu catalizador rumo à conformação de formas sociais e complexos já previamente-ideada.
Nestas feitas, o discurso “realista” dos pacifistas desmancha sob suas próprias odes, pois nem sequer chegam a apreender e direcionar-se ao ser real, mas a seu Outro, que lhe é também essencial à continuação no estágio em que está. Se objetiva efetivamente a mudança (o que não parece ser o caso), nem sequer compreendeu o que quer mudar. Constitui uma “consciência” (con)formada e co-formadora (como “convite” e impulso à colaboração e sustento) ao modo atual de organização da sociedade. Replicam um discurso que não é seu e nem de seus interesses.
E a resposta do líder revolucionário contra os pacifistas é incisiva: “nosso maior defeito é exatamente o excesso de inteligência. É ela que não nos deixa fazer nada, nos coloca de maneira inevitável de cabeça baixa, e que nos faz estar perenes como subalternos”. Um pouco antes menciona a tal “inteligência” requerida pelos pacifistas: “é toda a vez as mesmas frases de conformismo e resignação, o que, diga-se de passagem, vale somente para nós e não para eles”. Dessa crítica se pode reportar a outra lição de Lukács, agora de sua juventude. Em Legalidade e Ilegalidade, o filósofo húngaro comenta sobre o sentimento de impotência naturalizado sob a figura do sistema do capital e do Estado como seu instrumento de violência de classe. Ao retomar a contribuição de Engels na polêmica contra Düring e nas lições marxianas sob o papel do Estado e do direito dentro do capitalismo, afirma que os aparelhos de violência organizada, quando assentados em base econômicas e sociais determinadas e de modo universalizado, são acompanhadas de sua eminentemente de "expressão ideológica no pensamento e sentimentos dos homens” (Lukács, pg. 86). Não somente a forma-Estado, mas a ordem econômica a qual ele diz respeito e lhe con-forma, aparece como verdadeira “força da natureza” (Ibid., ibidem), a-histórica e intransponível. Um “realismo”. Assim, acabam por submeterem-se-lhe voluntariamente (o que não significa que estejam de acordo com ela). Somente a supressão da ideologia conformadora pode abrir espaço suficiente para uma verdadeira consciência da necessidade e possibilidade de transformação. Somente se pode transpô-la se a convicção da impossibilidade de uma outra ordem que não a ordem estabelecida já se acha abalada.
O nível de consciência e apreensão do real feito pelo líder revolucionário já demonstra sua compreensão da real situação por eles passada: o único meio efetivo de acabar com a repressão é através da via revolucionária, não institucionalizada, ilegal. Na batalha das ideias, já pode ser considerado vencedor. Os populares aderiram quase unanemente às armas. O “realismo” exercido pelo líder pacifista não se sustenta pelas próprias bases e na realidade, como na obra de Leandro, é rechaçado por aqueles que vivem nos ossos e na pele as últimas consequências do sistema. Pois não é “sua realidade”. Isso quando conseguem direcionar-se não ao Outro, mas ao real, apreendendo-o. A única possibilidade do “realismo” é con-formar, conformar e co-formar a opressão e a espoliação.
Aqui o autor não fala dos personagens nem para eles em suas histórias narradas. Dirige- se a nós, leitores, alertando-nos da necessidade de libertação destes estigmas ideológicos, correntes psíquicas. São estes que permitem a continuação da organização social como está, em que figuras como a de Natus Símile podem viver e rodopiar em existências luxuosas e fartas a partir da existência paupérrima da grande massa, aqui retratada não em sua fragilidade passiva, mas em seu potencial de agir. É sob essa sombra gigantesca que “protagonistas” devaneiam e elucubram (quando o fazem) suas vidas insignificantes e sem valor mais especial do que a de qualquer outro ser humano; as mesmas pelas quais replicam essa ideologia de suas próprias posições; “suas realidades” como a de todos.
Inclusive o autor nos deixa isso bastante claro ao fim do capítulo 4 e começo do 5°, o “púlpito” de inflexão, tapa na cara do leitor que pensa que essa história é sobre um personagem, um “protagonista”. Outra vez, o diálogo ali estabelecido é menos com Símile do que com quem lê - em suas naturezas similares, ou nascimentos similares sob o mesmo chão. Ficção e realidade se cruzam. A observação metalinguística de Leandro é salutar: até que ponto se confunde realidade e ilusão? O final estranho e nada heroico de Símile no 4° capítulo é o sinal- mor de que esta narrativa não é sobre ele. O capítulo 5 é a suma concretização do projeto. Cabe o leitor olhar a própria natureza similar.
Mas o que afinal o capítulo 4 tem a nos ensinar? Entre a mescla indiferenciada entre realidade e ficção, fica difícil fazer uma pergunta como essas. Tudo o que Símile passa (e sim, passa, pois há Natus Símiles em todos os lugares) é tudo o que nós passamos. “Sua realidade” é a nossa realidade. Sua FANTASIA é por nós vestida e adornada. A Travessia é mais difícil para quem se FANTASIA. De Natus, só se espera errância. Sua FANTASIA e seu FANTASIAR são suas “realidades”, seu “realismo” é esse que sua FANTASIA lhe dá. E essa que nos é dada à digestão. De nós, do outro lado da travessia, melhor que hajamos como o líder revolucionário: sem fantasias.
“A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche”
Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução. Karl Marx, 1844.
Manaus, 22 de abril de 2024.
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