imagem de Loren Lima
por Breno Lacerda
No dia catorze de janeiro de dois mil e vinte um, Manaus acordava sob os intensos gritos das sirenes do SAMU. Os raios solares ainda disputavam espaço com os últimos resquícios da noite e as ambulâncias rasgavam as ruas solitárias. Em parte, aquela movimentação era familiar aos habitantes da cidade, o país já vivia uma pandemia mortífera há quase um ano naquela época e a capital amazonense figurava entre as metrópoles mais afetadas pelo Coronavírus. Mas existia algo de diferente na atmosfera, os manauaras tomavam seus cafés sentindo na boca um gosto angustiante, um peso na voz ao dizer um mero bom dia. Alguém mexeu no celular e ficou perplexo, os olhos esbugalhados e o corpo petrificado, a notícia dizia: Manaus pode entrar em colapso com hospitais sem oxigênio. Governo já estuda enviar pacientes a outros Estados. A média móvel de mortes já ultrapassa os 180% e os cemitérios estão sem vagas para enterrar os corpos. Ali estava desenhada a maior crise sanitária da história do Amazonas.
A informação crua e direta atingiu a população feito uma explosão atômica. Quem tinha seus parentes internados não pensou duas vezes em enfrentar o risco da contaminação para obter informações, a situação era de calamidade total; muitos chegaram só para recolher o cadáver de seus entes. Os hospitais bloqueados por policiais e uma multidão desesperada querendo entrar, porque não saíam notícias. Uma pilha de sacos pretos apinhava-se nos corredores, corpos sem identificação, tirados de seus leitos a fim de que não ocupassem espaço. O oxigênio era compartilhado e a sorte punha-se ao lado daquele cujo organismo fosse mais resistente. O desespero agarrou a todos. Os governantes vieram a público declarar a incompetência em suprir os estoques em falta e aconselharam os cidadãos a obterem oxigênio de outra forma. As mortes aumentavam vertiginosamente, e os cemitérios abriram as covas coletivas.
Durante um tempo as autoridades e a imprensa silenciaram sobre os fatos ocorridos. Quando a gravidade foi reduzida, as imagens macabras do catorze de janeiro começaram a se esvair. Chamaram-na de colapso, catástrofe, crise dos respiradores. Nomes pomposos e alarmantes, mas que, a meu ver, não caracterizam tais dias. Certa vez, um romancista perguntou ao seu mestre o porquê dele não ter gostado de seu livro. O sapiente homem respondeu: -Você deve chamar as coisas pelos nomes que elas têm, pelo que são.
Talvez ninguém tenha sido tão cirúrgico em nomear o dia catorze de janeiro de dois mil e vinte um como o escritor e filósofo Victor Leandro. Em 12/11/2022, no Piaf Restaurante e Café, localizado na rua 10 de julho, Centro histórico de Manaus, lançou o título de seu mais novo romance “Catedral dos mortos”. Designação precisa para uma tragédia que havia tempos caminhava à beira do rio Estige. Enquanto se falava do livro, a imagem do Teatro Amazonas surgia pomposamente contrastante à obra. Dali a alguns dias o monumento símbolo da cidade seria palco das comemorações natalinas organizadas pelo governo, que não ergueu um memorial às vítimas, não promoveu uma cerimônia de luto. Coube à literatura erguer um santuário, não somente aos mortos, mas as memórias deles ainda suspensas no ar.
De “Catedral dos mortos” deve-se primeiro ressaltar os sentidos imagéticos de seu título. Por Catedral entende-se que é a igreja principal de uma diocese, onde se localiza o assento episcopal. A origem da palavra remonta o ano de 1344, tendo raízes no latim medieval e funcionando como uma espécie de redução da expressão ecclesia cathedralis, para se referir à cadeira do bispo. A figura do bispo é crucial a uma catedral, pois ele é o responsável pelas filiais da região. Se vincularmos o nome do romance do senhor Victor Leandro ao conceito exposto, perceberemos que Manaus foi o centro das mortes no Brasil, uma matriz mortífera do vírus. Uma instituição só é considerada catedral pela presença do bispo, peça administradora. A tragédia dos respiradores possui seu clero, alguns estão em seus palácios políticos e outros foragidos. Assim, antes de folhearmos a primeira página, já estamos no epicentro das mortes e conscientes de que há um fator decisivo além do vírus; a omissão e o negacionismo de governantes. Mérito do autor, que soube condensar o artístico ao político no título.
Por outro prisma, o nome do romance evoca uma cerimônia fúnebre, anormal. Pois a morte não é encarada como processo natural da humanidade, ela veio subitamente e ceifando uma quantidade maior do que o esperado. O funesto usurpa o sagrado dos santuários dedicados a santos e a Deus, vilipendiando o escopo de uma catedral. A fé dá lugar à saudade e à ausência, os mortos são venerados, convocados; não pelo motivo de serem santos, é que o sangue ainda clama por justiça. Está claro que escolher um bom nome para um livro pode evitar prefácios longos e chatos. A obra em discussão mostra isso perfeitamente. Descobre-se numa expressão de três palavras uma introdução eloquente e poderosa.
Da leitura de “A catedral dos mortos” tive a impressão de ser uma obra que narra os bastidores da maior tragédia sanitária do Amazonas; claro, ficcionalmente. Á época vivíamos enclausurados devido às medidas de prevenção à Covid-19. Tudo que sabemos foi-nos dito pela imprensa, redes sociais, mensagens duvidosas do WhatsApp, pela experiência dos sobreviventes ou parentes das vítimas fatais. A obra nos enseja a oportunidade de entrarmos em certos lugares restritos dos hospitais, nos meandros do poder, embora não tão abertamente, compartilhar da exaustão de guerra dos profissionais da saúde, da luta dos pacientes a lutar contra a morte quase certa, a batalha inglória de tantos homens e mulheres que madrugaram nas filas pelos cilindros de oxigênio, o desespero de filhos e filhas, netos e netas, sem saber se o pai, a mãe, avó ou avô estavam vivos. O romance nos conduz pelos caminhos inabitados da tragédia, fruto de suas pesquisas e imaginação criadora, esta tão necessária à literatura hoje.
Para colocar o leitor nos lugares mais recônditos da catedral, o autor foge de qualquer convencionalismo. Estrutura seu livro em quatro pontos de vista diferentes tratando do mesmo objeto ou realidade, a tragédia dos respiradores. Não o faz por acaso ou preciosismo, sua intenção é abranger os diversos setores afetados pelo colapso do dia catorze e tratar das pessoas impactadas pelas consequências da carnificina pandêmica. Temos a ótica de um médico, de um paciente, de um morador da periferia e um repórter. É tal estruturação que nos imprime a sensação de estarmos diante dos bastidores daqueles momentos, feito seres invisíveis transportados numa máquina do tempo.
Engana-se quem pensa que a pandemia tenha afetado apenas os mortos e seus familiares. O vírus foi um redemoinho, prejudicou todos ao seu redor. Na narrativa essa potência destrutiva ficou evidente. Whashigton David ou WD, como era chamado, é um médico de hospital público atuante nos piores momentos da crise. Por meio dessa personagem, representante dos profissionais de saúde, o leitor é exposto a todos os sacrifícios que a classe se submeteu para salvar vidas, mas ao mesmo tempo a armadura quixotesca se mistura à nudez dos medos humanos, as lembranças mais tenras, quando curar pessoas era um sonho heroico. Entre imagens do passado e esforço hercúleo, as questões políticas-administrativas entravam em cena pondo a solidariedade humana à prova.
Longe dos hospitais, um repórter acompanhado de seu parceiro de trabalho fica sabendo depois de horas de espera que a coletiva de imprensa foi transferida para um local a quilômetros dali. Por ser mais experiente que seu parceiro, cujos olhos ainda ardem de paixão pelo jornalismo, acaba advertindo-o de que situações desse nível são corriqueiras na profissão. A modificação do lugar era uma estratégia desmotivadora, a fim de demover os jornalistas na feitura de perguntas embaraçosas. Acontecia sempre nas épocas de calamidade. A história do repórter está cheia de eventos pouco escrupulosos com políticos, de causos de anos de experiência. Por isso, esse personagem é durão, mal-humorado, calculista. As suas lentes nos revelam o mundo podre e sórdido da política manauara. Contudo, há uma cena que quebra as estruturas desse homem cascudo. Ao entrevistar um familiar de uma pessoa que está internada, presencia uma das cenas mais impactantes do romance. O familiar fica sabendo da morte de seu ente querido pelo celular e entra em desespero. Não há casca que não se rompa diante da morte e seus efeitos.
Marino é um paciente infectado com covid-19 apresentando sintomas de nível médio em evolução para grave. Sozinho no seu leito, pois no pico da pandemia não era permitido acompanhante, sente seu corpo enfraquecido, mas sua mente ainda está bem. Seus pensamentos e raciocínios eram seu último refúgio, recusavam-se ceder ao vírus. Homem de boa inteligência, por pouco não se tornara padre, apesar de conservar as lições de filosofia e teologia do tempo de seminário. De sua fortaleza, observa o trabalho de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, os quais se desdobram no atendimento. Perto de si os moribundos, de respiração lenta e profunda, outros gemendo por causa de dores lancinantes. Os corredores lotados e macas velozes cruzando as portas com novos pacientes, um cenário de guerra. Essa personagem luta para não perder a consciência e através de seus olhos observamos o caos interno dos hospitais, de pessoas morrendo sem esperança, de médicos inertes incapazes de produzir oxigênio. Uma passagem comovente e aterradora nessa narrativa é quando Marino, depois de um cochilo longo, pergunta à médica onde está o senhor educado e carismático cheio de projetos para a sua família. Depois de uma resposta evasiva, ele olha para um grande saco preto perto da porta, então entende tudo.
No coração da zona Leste, deparamo-nos com a história de Renilson. Sua vozinha está num estado crítico da doença, precisa de oxigênio o quanto antes. As alternativas que restam giram em torno da internação ou a busca por cilindros de ar. A primeira é praticamente uma chancela ao falecimento, a última é dificílima. A família é pobre e um cilindro era caro demais, sem falar nos preços inflacionados que as empresas cobravam. A única alternativa encontrada é vender a moto de trabalho, mas o veículo é velho e gasto. Renilson recorre a um agiota, ou melhor, traficante que faz agiotagem. Deixa sua moto como garantia e recebe um prazo de poucos dias na retribuição dos empréstimos com juros extrapolados, era o único jeito. A compra dos aparelhos de oxigênio mostra a ansiedade, agonia e apreensão de pessoas amontoadas na esperança de salvar a vida de seus familiares. Há a ganância e o objetivo inescrupuloso dos empresários em lucrar com a desgraça social. Renilson nos coloca nas agruras da periferia, na luta pela sobrevivência, ainda que esta envolva acordos espúrios e arriscados. Particularmente, esse ponto de vista é o meu favorito. A narração ganha em tensão, os tipos humanos são bem contornados, há equilíbrio de emoções e a ação flui de forma mais livre. A meu ver, é o ponto alto da obra.
“Catedral dos mortos”, de Victor Leandro me fez recordar vivamente o romance La hojarasca, de Gabriel García Márquez. A estruturação narrativa é muito parecida, embora os temas centrais não tenham pontos de contato. Porém o diálogo ocorre, no que tange às escolhas narrativas, com obras de William Faulkner, pela multiplicidade de narradores. É uma nota a título de observação que faço ao livro aqui analisado. O autor não teve receios em mudar da primeira pessoa à terceira pessoa, no que teve êxito pois não houve confusão. Existe um fio condutor entre as personagens, que sobrepuja a pandemia, é a devastação do descaso político. As autoridades evaporaram, tornaram-se invisíveis e as covas se multiplicaram. “Catedral” tem o mérito de ser a primeira obra a versar sobre uma das maiores tragédias do Estado do Amazonas. Ela está prenhe de sinos gigantescos a soar os nomes dos mortos, a convocar uma procissão de velas acesas pelas lembranças.
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