Há uma cena emblemática logo no início do filme O último portal, de Polanski, em que um sujeito aparece em uma cadeira de rodas, provavelmente incapacitado por um AVC, porém ainda apto a compreender o que se passa a sua volta. No fundo, seus herdeiros negociam sua coleção de livros, que para eles não passa de uma excentricidade do velho agora sem utilidade nenhuma, mas que pode ter algum valor comercial. O especialista chamado por estes, com seu olhar ganancioso de comerciante, oferece um preço bem abaixo do aceitável por uma obra raríssima. O Velho, então, contorce-se na cadeira, aviltado pelo sacrilégio cometido e por sua impotência. É como se o tivessem enterrado antecipadamente em vida.
Conheci Joaquim Melo numa situação para ele corriqueira, mas que a mim foi bastante peculiar. Algum pesquisador do Rio estava interessado em meu ensaio O Norte impossível, no que ele se incumbiu de ir a sua procura. Encontrou-me no Facebook e travamos contato. Surgiu daí uma ótima colaboração, em que ele amistosamente recepcionava meus trabalhos para serem vendidos, além de buscar obras raras que me interessavam e que somente ele poderia encontrar.
Contudo, o que mais me causava admiração eram nossos diálogos livrescos, nos quais se revelava a clareza com que percebia o valor e a necessidade de circulação dos livros, bem como de estabelecer sua Banca como a intersecção entre o mundo e a Amazônia. Tudo isso combinado com uma generosidade sem fim, que nos surpreendia pela força de seu desprendimento.
Recordo somente uma de várias situações. Certa vez, procurava por Malária e outras canções malignas, de Aldísio Filgueiras. Ele falou que iria procurar. Passou-se cerca de um mês até que pudesse achá-lo. Quando o busquei, disse que não precisava pagar nada. Saí obviamente agradecido, mas durante muito tempo sem entender esse contrassenso à lógica mercantilista.
Foram ocasiões como essas que me fizeram pensar, devido a sua partida, na cena descrita acima, juntamente com um desfecho que se afigura em mim com a potência de uma verdade, embora permaneça apenas no devaneio – mas não é isso afinal a vida? - . Fosse ele o negociador de livros do velho, era provável que pagasse um valor alto e justo, e entregasse adiante a obra de graça a quem se prontificasse a fazer bom uso dela.
Porque as pessoas passam, mas os livros ficam, e estes a partir daí dão-se a pertencer a algo maior, chamado cultura. Nesse sentido, um livreiro é sempre mais do que um vendedor, ou seja, é um embaixador da riqueza imaterial dos povos. É essa a sabedoria oculta que Joaquim Melo guardava e nos leva, mas que, tal como os livros em sua Banca do Largo, também fica.
Comentários