por Bruno Oliveira
Percebemos ao longo da tradição literária que há um comportamento, a qual poderíamos chamar de resistência, comum a muitos escritores e críticos em face de uma situação que se mostra insuportável ou mesmo a um sistema - que pode ser econômico, político, literário, etc.
Pensemos olhando essa tradição as oposições do que se convencionou chamar de escolas literárias. Em um contraposição bem nietzschiana de apolíneo e dionisíaco podemos dizer que o barroco resiste e supera o renascimento; aquele é superado pelos árcades; este pelo romantismo; depois realismo e deságua no mais profundo movimento de resistência e superação: o modernismo.
Mas essa atitude não se restringe às escolas, ou seja, a questões de forma e estilo; os escritores transbordam resistência perante situações do cotidiano: observemos os escritores da década de 30 que tinham como tema escrever, numa perspectiva proletária, a condição dos Brasil profundo: as suas mazelas, misérias, etc.; ou pensemos nos escritores que se opunham com sua escrita contra o surgimento e a manutenção do nazifascismo; no século XIX, também temos aqueles que estão em diversas frentes resistindo ao colonialismo, mesmo que ainda numa lógica burguesa (fundação dos estados nacionais).
Os teóricos da literatura também não se deixaram colonizar como disse Benjamin Abdala. Ao longo da tradição crítica da literatura não são poucos os casos de pensadores que estão imbuídos de um espírito de revolta e resistência. São esses que irão ao tentar compreender o Brasil e as suas manifestações culturais - mais especificamente a prosa e a poesia - criar e fundamentar teorias que são nossas: o caso mais emblemático é o antropofagismo de Oswald de Andrade, que irá ressoar por toda a cultura brasileira durante o século XX (tropicalismo, concretismo, cinema novo, manguebeat, a geração mimeógrafo, etc). Podemos também ressaltar as figuras de Antonio Candido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi e Benjamin Abdala Jr. Destes dois últimos, procuraremos ao longo deste trabalho apontar como pensaram e expuseram o que entendem por resistência.
Percebemos, portanto, que a postura de resistência é o primeiro passo para uma criação. É um comportamento de saber que algo está ausente e precisa ser exposto ou criado: a liberdade, a nação, etc.
Inicialmente pensamos em discutir a partir do trabalho de Alfredo Bosi, em Literatura e Resistência, mais especificamente no capítulo Narrativa e Resistência, como este pensador brasileiro pensa a temática a ser discutida por esse trabalho; numa dialética, numa relação entre duas partes: resistência como tema e resistência como forma da narrativa.
Depois pensamos em abordar dois textos de Benjamin Abdala Jr.: Comparatismo literário e comunitarismo supranacional e Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada.
Entendemos que ao agir assim apresentaremos um painel complementar de dois dos sistemas que formam a literatura: o escritor e o crítico e as suas relações com o conceito de resistência.
Narrativa e Resistência
Em seu texto Narrativa e Resistência, Alfredo Bosi diz que resistência não é um conceito estético, mas sim ético. O conceito está na ideia de algo que por meio da força, da ação, da ideia se opõe a outra força que é mais forte. “Resistir é opor a força própria à força alheia” (2002).
Embora seja um conceito de outra área, ou seja, da ética e, portanto, de atitude prática, resistência faz parte de um bloco total que no fazer artístico assume formas: nos signos, nos temas, etc.
Para Bosi, a junção entre resistência e narrativa ocorre de duas maneiras: uma temática e outra formal, “a resistência se dá como processo inerente à escrita” (2002).
“A translação de sentido da esfera ética para o estético é possível, e já deu resultados notáveis, quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida em sociedade: os seus valores. À força desse ímã não podem subtrair-se os escritores enquanto fazem parte do tecido vivo de qualquer cultura” (BOSI, 2002, pág. 120)
Se é na vida prática que o homem de ação, o educador, o político retira os seus valores a partir das relações entre os sujeitos para agir e praticar a sua ética, ou seja, ele está subordinado ao princípio da realidade; o escritor do romance está em outra situação, já que
“dispõe de um espaço amplo de liberdade inventiva. A escrita trabalha não só com a memória das coisas realmente acontecidas, mas com todo o reino do possível e do imaginável. O narrador cria, segundo o seu desejo, representações do bem, representações do mal ou representações ambivalentes. Graças à exploração das técnicas do foco narrativo, o romancista poderá levar ao primeiro plano do texto ficcional toda uma fenomenologia de resistência do eu aos valores ou antivalores do seu meio.” (BOSI, 2002, pág. 121).
Pensemos, por exemplo, no romance Simá - Romance histórico do Alto Amazonas, de Lourenço Amazonas, quando o narrador logo nos capítulos iniciais para fazer uma metáfora da colonização apresenta um abuso sexual praticado por Régis, um regatão - um símbolo da colonização portuguesa no seu aspecto comercial na região amazônica -, a uma jovem indígena. Aqui há toda uma construção a partir do foco narrativo dos valores e antivalores de uma determinada época e região. “Exemplos de valores e antivalores são: liberdade e despotismo; igualdade e iniquidade; sinceridade e hipocrisia; coragem e covardia; fidelidade e traição, etc” (2002).
Outro elemento importante que coaduna resistência e o foco narrativo são as vozes dentro do romance. Ao falar de Dostoievski, o mais exemplar articulador da polifonia, e que podemos levar para inúmeros romances, Bosi diz o seguinte: “as vozes das personagens são pontos de vista onipresente em Dostoiévski: o nó temático inextricável de bem e mal, de inocência e culta, de vontade e destino” ( 2002).
Ao apontarmos outra obra da literatura amazonense podemos encontrar vozes que se fazem resistência ao mesmo tempo que são complementares. Em Catedral dos Mortos, de Victor Leandro, temos ao menos três vozes que se juntam para contar a história do dia mais angustiante para os manauaras durante a pandemia: quando acabou o oxigênio na cidade. Nessa obra temos vozes de personagens social e economicamente distintos: um marginalizado que precisa se submeter às forças fora do Estado para garantir um cilindro de oxigênio para a sua avó; a voz de um médico que faz de tudo e mais um pouco para conseguir lidar com a situação e salvar os seus pacientes; e a voz de um jornalistas para apresentar as estruturas de poder e seus bastidores: os desvios, a corrupção, os dilemas, etc. São três vozes que se juntam para resistir: não deixar que aquele dia seja esquecido. Três vozes que se coadunam para se opor a algo que o poder estabelecido sonha que ocorra: o esquecimento.
“Em princípio, a margem de escolha do artista é maior do que a do homem-em-situação, ser amarrado ao cotidiano. Ao contrário da literatura de propaganda - quem tem uma única escolha, a de apresentar a mercadoria ou a política oficial sob as espécies da alegoria do bem -, a arte pode escolher tudo quanto a ideologia dominante esquece, evita ou repele. Embora possa partilhar os mesmos valores de outros homens, também engajados na resistência a antivalores, o narrador trabalha a sua matéria de modo peculiar; o que lhe é garantido pelo exercício da fantasia, da memória, das potências expressivas e estilizadoras” (BOSI, 2002, pág. 123).
Ou seja, o escritor tem a sua maneira de ser resistente e isto está vinculado ao aspecto da estética: “não são os valores em si que distinguem um narrador resistente e um militante da mesma ideologia. São os modos próprios de realizar esses valores” (2002).
Isso vai muito de encontro ao que Benjamin Abdala Jr. diz sobre a prática/ação do teórico da literatura: não podemos nos deixar colonizar por outras formas de ciência tanto humanas quanto biológicas. A literatura tem seu próprio modo de dizer e observar a realidade.
Embora resistência para Bosi esteja vinculado, pelo menos tematicamente, a um período específico da literatura: aquela feita a durante e a partir dos desdobramentos da segunda guerra mundial, e que além disso, esteja de algum modo vinculada aos ditames da filosofia existencialista e ou marxista, a nosso ver a literatura sempre apresentou formas de resistência durante toda a sua existência.
Pensemos, por exemplo, a própria existência de Simá, que é uma metáfora da colonização da região amazônica. Até então a história que esse romance narra: a extinção depois de uma revolta indígena de três povoações do alto amazonas estava vinculada a ideia de que tudo ocorreu por causa de uma negação por parte dos jesuítas de um relacionamento entre dois indígenas: Simá e Domingos.
O que o romance narra, na verdade, é o fim não só de algumas povoações, mas sim o término de dois sistemas que até então se digladiavam: o colonialismo português e o sistema de existência dos povos originários. Esses dois sistemas são aniquilados por algo que na época de Lourenço já se apresentava quase todo posto: o capitalismo.
À resistência a este novo sistema, já no século XX, podemos citar Abguar Bastos em seu livro Terra de Icamiaba, que apresenta a narrativa de um segmento populacional da região norte: os trabalhadores da castanha. Lutando contra tudo e todos, Bepe, o personagem principal, organiza uma revolta dos trabalhadores contra toda uma estrutura social que perpassa banqueiros, donos de terra, religiosos, etc.
Essa revolta não se restringe apenas à reivindicação de direitos, mas também na tentativa de construir uma nova sociedade fundamentada no comunitarismo, opondo-se diametralmente ao individualismo capitalista.
Crítica e Resistência.
Outro pilar que faz parte do sistema literário é o do crítico, ou em nossos termos, o teórico da literatura. Separamos a visão de Benjamin Abdala Jr. sobre o que ele entende o que é fazer crítica, que ao nosso ver, é imbuída de muita resistência. Tal concepção perpassa uma ação que visa o próprio texto e atitude de resistência. Expliquemos ao longo do trabalho.
O primeiro ponto para Benjamin Abdala é saber que o crítico tem uma posição e é importante que ele saiba disso: “necessidade de o crítico ter consciência de seu lócus enunciativo, o lugar de onde ele acessa o mundo” (pág. 7). Esse lugar é de natureza híbrida e dependente entre si composto de 1) multi-interdisciplinar; 2) político-culturais.
Embora esteja próximo de outras formas de conhecimento, principalmente das ciências sociais e humanas, não podemos nos deixar colonizar por elas. Como teóricos da literatura, é preciso ter em mente que esta tem a sua própria forma de compreender e analisar a realidade e, muitas vezes, evidenciando situações e problemáticas que só muito tempo depois serão apresentadas em sua totalidade por essas ciências. “A atividade crítica deve partir e voltar para o próprio objeto literário que está sendo analisado, que é um modo de conhecimento da realidade afim das ciências humanas e sociais” (pág. 8).
Pensemos em dois casos: Balzac e Dostoievski. Marx e Engels diziam que aprenderam primeiro e de uma maneira tão profunda as relações do capitalismo nascente na França não com os pensadores sociais da época, mas sim com o escritor da Comédia Humana. Mesma postura teve Nietzsche, que percebeu imediatamente quando leu Dostoievski que tudo aquilo que sempre pregara e via nas relações e psiques humanas do capitalismo decadente já estavam nos romances do autor russo.
Esse lugar, que o teórico precisa compreender, além de ser multi-disciplinar, também é político-cultural. O que isso quer dizer? que o crítico ao praticar sua atividade escolhe tomar partido de uma forma mais inclusiva ou menos inclusiva. Para Abdala, exatamente por questões de classe, que no caso serve como pressuposto para ter uma atitude mais coletiva, antiimperialista, anticolonial, a atitude do crítico deve ser de solidariedade, comunitarista.
Abdala escreve a partir de um mundo que depois da crise econômica de 2008 vê esfacelar toda uma série de premissas caindo por terra. O sistema até então vigente pregava que não havia mais alternativa para além do capitalismo em sua face neoliberal: ou seja, extremamente individualista, contra o Estado de bem-estar social, etc.
A esse esfacelamento das ideias e expectativas, mesmo que ainda se sustente enquanto sistema econômico, Benjamin propõe outras alternativas que estão vinculadas a uma postura do intelectual de ser mais esperançoso, um princípio de juventude. Os intelectuais devem assumir uma atitude mais ativa e prospectiva “para criar ou redesenhar, com matização mais forte, tendências de cooperação e solidariedade que sempre embalaram ideias democráticas” (ABDALA JUNIOR, pág. 9).
Essas ideias democráticas estão vinculadas a condição de não ser colonizado por ideias de outros povos e não colonizar, mas pelo contrário, manter relações de solidariedade. É necessário, portanto, criar conexões com países de língua espanhola e portuguesa - o que Abdala entende por iberoafroamerica. “O comunitarismo afirma-se, na atualidade, envolvendo pluralidade nas articulações políticas, pautada sempre pela supranacionalidade"(ABDALA JUNIOR, pág.12).
A postura democrática deve ser acompanhada por um otimismo crítico ao acreditar que o mundo pode ser diferente e melhor do que ele é. A esperança como princípio: “Ao contrário da ideologia do fim da história e da inculcação de que vivemos no melhor dos mundos é imprescindível acreditar em nossa potencialidade subjetiva e objetiva-las em projetos inclinados para o futuro” (ABDALA JUNIOR, pág. 16)
Para quem vive no Brasil e é um agente cultural
“o momento é de relevar blocos de nossa comunidade linguística - cultural, de forma correlata às estratégias de ordem econômica que vêm sendo desenvolvidas pelo país. Mais particularmente, importa estreitar relações com nosso bloco linguístico-cultural e também, numa laçada mais ampla, com os países iberoamericanos. As redes, na atualidade, são mais amplas, planetárias, e envolvem desde as esferas dos recortes do conhecimento até as de geopolítica” (ABDALA JUNIOR, pág. 16).
Ser democrático significa também agregar o máximo possível dos repertórios de outras culturas (mestiçagem essencial = crioulidade) ao mesmo tempo que se observa a própria cultura a partir de um ponto de vista próprio (antropofagia).
Isso acarreta uma condição nos estudos da literatura:
“Esse descentramento solicita uma teoria literária descolonizada com critérios próprios de valor. Em termos de literatura comparada, o mesmo impulso nos leva a enfatizar estudos pelos paralelos - um conceito mais amplo que o geográfico e que envolve simetrias socioculturais. Assim, os países ibéricos situam-se em paralelo equivalentes ao de suas ex-colônias. Em lugar de um comparatismo da necessidade que vem da circulação norte/sul, vamos promover, pois o comparatismo da solidariedade, buscando o que existe de próprio e de comum em nossas culturas. Vemos sobretudo duas laçadas, duas perspectivas simultâneas de aproximação: entre os países hispanoamericanos e entre os países de língua (oficial) portuguesa” (ABDALA JUNIOR, 2003)
Em mundo governado por um pensamento que se mostrou falido, mas que mesmo assim ainda está vivo como um zumbi (Mark Fisher), Benjamin Abdala apresenta uma utopia de um novo mundo; apresenta a resistência criada da solidariedade, da mestiçagem (crioulo). Entrega a nós, os filhos dessa sociedade, em um mundo que já não acredita mais em alternativas, uma outra possibilidade de existência: fundada no comunitarismo e no otimismo crítico.
Conclusão
Como disse Alfredo Bosi, com outras palavras, que embora a resistência não seja um conceito do estético, elas andam juntas. Percebemos essa relação na prática e ação do escritor: quando ao descrever o mundo, se posiciona e apresenta as condições e contradições de todas as sortes de sujeitos. Essa tomada de posição pode ocorrer na escolha do tema ou mesmo dentro da narrativa ao dar voz a indivíduos que nunca a tiveram como, por exemplo, os povos originários em Simá e os marginalizados em Catedral dos Mortos.
Resistência embora tenha uma conotação de reação a uma ação imposta por outrem é também uma etapa na elaboração de respostas a essas outras forças. Pensemos no conceito de crioulidade, de Benjamin Abdala, que abarca uma estrutura de ser e existir que é resistência a todo um sistema colonial e imperial.
Resistir é se posicionar, é tomar partido.
Referências.
AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Simá – O romance histórico do alto Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Necessidade e Solidariedade. In: De Voos e Ilhas: literatura e Comunitarismos. - São Paulo: Ateliê Editorial, 2003
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Comparatismo literário e comunitarismo supranacional.
BOSI, Alfredo. Narrativa e Resistência. in: Literatura e Resistência. - São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
BASTOS, Abguar. Terra de Icamiaba (Romance da Amazônia). Manaus: Editora da Universidade do Estado do Amazonas, 1997.
MARK, Fisher. Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paul: Autonomia Literária, 2020.
SILVA, Victor Leandro. Catedral dos Mortos. Manaus: Editora Transe, 2022.
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