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Todo marxismo é materialismo. Este é a sua doutrina epistemológica. Logo, quem pretende enveredar em seus rumos deve olhar antes para sua forma básica, consignada na concretude do mundo. Daí para frente, pode pensar em constituir algum sistema de realidade, cuja coerência será depois colocada Sub Judice.
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Tal quer dizer muitas coisas, e tem várias severas implicações. Contudo, para o momento, o mais importante a ser dito é que se se considera que os objetos do mundo estão nele mesmo, é-se materialista, de onde se pode depois extrair suas formas de desdobramento – sendo a dialética uma das possibilidades.
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Assim, em princípio, na verdade em princípio mesmo, não há uma discordância entre as ideias de Marx e quaisquer outras formas de pensamento que partam da noção de matéria, o que obviamente não significa que as visões sejam assonantes. Isso já é uma outra história. Porém, está aberto um campo abrangente.
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Ora, opõe-se a hermenêutica de algum modo aos pressupostos do materialismo? De maneira alguma. No máximo, pode-se dizer que o intérprete destila uma dogmática indiferença, mas que não atinge as vias do conflito. O mundo tratado pela interpretação é outro. Ou o mesmo. Pouco importa. Seus problemas encontram-se em outros sítios.
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Agora, olhemos com atenção as relações entre marxismo e hermenêutica. Em termos gerais, pode-se dizer que o primeiro é uma teoria social que busca dar conta da organização conjunta da vida humana pelo estudo de sua origem em última instância econômica. Está aí o seu arcabouço de explicação, com o qual se intenta capturar a dinâmica da sociedade em seus processos de constante movência, empurrados como são pelas contradições internas próprias dos fenômenos.
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A hermenêutica, por sua vez, constrói-se, como diz Ricoeur, como uma tentativa de discernir o discurso na obra, ou seja, de definir os diversos significados viáveis nos textos. Expandindo essa lógica a outros objetos que não apenas escritos, a consideração a que se chega é de que o hermeneuta tem como ofício deslindar representações, ver coisas que podem atuar com conteúdo mental em lugar de outras, observando certos princípios. Dirige-se, desse modo, sobretudo às vias do simbólico, em que se destacam como item privilegiado de exame os eventos da cultura.
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Numa primeira abordagem, marxismo e hermenêutica não se encontram, pois se endereçam a objetos diferentes. Contudo, há que se pensar mais a fundo, rumando para a ideia de que se a cultura está contida no social, ela também é social. E se tudo em última instância vem do econômico, a cultura vem do econômico. É assim que procedem os dialético-críticos dos fenômenos culturais.
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Obviamente, em sua jornada, esses pesquisadores encontram espinhos. Seus instrumentos não servem para observar com minúcias o que se passa a sua volta. E a solução é apelar para a ideia de autonomia relativa, textualmente referida por Engels. Contudo, esta parece ser uma solução pouco prolífica, pois deixa em aberto a pergunta sobre o que acontece se colocarmos a hermenêutica e o marxismo no mesmo copo, quer dizer, se de uma elisão entre os dois métodos pode despontar alguma frente produtiva de entendimento.
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O hermeneuta olha para a coisa, e visa a sua compreensão. Em termos tradicionais, seu trabalho se encerra quando estão figuradas as significações mais assertivas acerca daquilo que algo representa, sem maiores compromissos com juízos de validade ou incursões críticas. Se o que observa é contributivo ou danoso, isto não lhe cabe dizer.
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Porém, fica um tom de falta nessa leitura que parece ingênua, posto estar claro que, em algum nível, toda realização cultural não decorre simplesmente das elaborações autônomas de um povo, mas também sofre a intervenção de atores interessados, que instituem como hábito certos mecanismo de dominância. Surge então o terreno da ideologia, invariavelmente atrelado a estruturas de poder.
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Quanto a isso, o intérprete, se quiser cumprir plenamente sua tarefa, precisa estar atento, e, quando o faz, atua dentro do que pode ser chamado de hermenêutica crítica, na qual aparece como suporte indispensável o intercurso do marxismo, que tem se notabilizado na história por seu combate permanente contra a opressão humana por meio da ideologia.
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Já quando se busca deslindar objetos culturais com base em sua origem social, mas assentindo neles em pontos que se encontram livres de uma ideologia exploratória, encontramo-nos nos trajetos da crítica hermenêutica, segunda chave de direção do diálogo investigativo aqui inscrito.
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Para exemplificar: se digo que O estrangeiro de Camus é oriundo da vacuidade da vida burguesa moderna, mas que enuncia uma representação relevante para discutir a hipótese do homem absurdo, estou fazendo uma crítica hermenêutica; por outro lado, se afirmo que a obra é a metáfora da condição humana, porém apenas nas situações estritas do espírito do tempo da primeira metade do século XX, o que cumpro é uma hermenêutica crítica. A escolha por um dos percursos, sem dúvida, depende dos aspectos que se pretende pôr em evidência.
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Em ambas as alternativas, o ganho é bastante explícito. Mantém-se a autonomia da ação simbólica, ao passo que se inibe a predominância da ação instrumental ideológica, num movimento de exame criador.
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Há, por certo, sensíveis consequências metodológicas em função de tais caminhos, o que naturalmente demanda um longo trabalho de desenvolvimento, suscetível a acertos e erros. Ao essencial segue-se o imprevisto. É o que vamos desde aqui construindo.
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