top of page
Buscar
Foto do escritorsegundaviablog

Literatura e discurso


1

Há poucos dias, encerrou-se em Manaus o FLIC – Festival Literário do Centro, que, aliás, foi muito oportuno. Mas é curioso que a atração maior do evento não tenha sido um poeta ou ficcionista, e sim um propagador de ideias. Isso diz muito sobre a literatura de nosso tempo.

2

Ou nem tanto do nosso, ou será desde sempre? Verdade é que o literário não de agora se confunde com o ensaístico, a ponto do segundo querer trocar-se pelo primeiro, e vice-versa – no que reside o nosso problema. Pode-se chamar o fenômeno de reforço, de traço, ou de inimigo oculto, um conjunto de células loucas que de repente se desenvolvem a ponto de querer destruir o organismo, num movimento tão brutal como irresistível.

3

A literatura sempre foi irmã de ideias, porém nunca sua serva. Se ela invariavelmente trouxe um conteúdo ideológico, este, na maior parte da história, veio subjacente a um conjunto de imagens - é o que preconiza Camus. Entretanto, isso tem mudado paulatinamente, em especial na ficção, a ponto desta se ver de maneira gradativa perdendo o seu lugar nas obras.

4

Ora, onde isso começou de modo mais intenso? O ponto de viragem foi a mudança de voz da terceira para a primeira pessoa. Com ela, abriu-se caminho para que o narrador fosse convertido gradualmente em orador, cuja tarefa, hoje regida por acadêmicos, é propagar os dizeres propagandísticos da moda universitária. Assim, substitui-se a imagem pela proposição, e acabamos que lemos e pensamos o texto pelo valor que poderia ter um ensaio foucaultiano.

5

Então, retorna a renitente pergunta: mas isso já não acontecia antes? Sim, só que de forma muito mais discreta e menos comprometedora. Até o século XIX, o que se fazia em geral era meter uma personagem para tal fim – procedimento ficcionalmente aceitável em qualquer sentido. Hoje, as personagens aparecem tão somente para lembrar de que ainda se trata de uma narrativa, embora esta venha totalmente secundarizada. As células loucas enganam o corpo enquanto o desutilizam a contento.

6

Façamos ouvir a voz do progressista. A mudança é inevitável. A literatura segue o espírito do tempo. Não resta senão acompanhar o fluxo. Se a palavra ruma para essa direção, é porque persegue seu bom destino. Melhor calar e tentar escrever o melhor que podemos.

7

Com esse vaticínio acrítico porém adequado ao momento, termina a ficção. Sobra a Língua de Eulália, a apoteose da anti-intriga.

19 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


Post: Blog2_Post
bottom of page