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Foi Franco Moretti que, em seu importante Atlas do Romance Europeu, deslindou-nos uma verdade que, embora parecesse óbvia, teimava em não se afigurar a nossos olhos: de nenhum modo, a literatura é a transmissão de um cânone, e sim o resultado de um turbilhão de acidentes, não importa o que diga o grande Harold Bloom.
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Assim, dentro do assimétrico mosaico que resolvemos chamar de história, as manifestações literárias somente de forma muito artificial podem seguir linearmente de uma tradição a outra. Em sua fatualidade, o que surge nos textos é a confluência de inúmeras anedotas desconexas, que vão do popularesco ao erudito, atravessadas por uma consciência que, de maneira igualmente imprecisa, procura agregá-las com certa uniformidade, num exercício entrecortado por múltiplas circunstâncias imprevistas – a maioria delas subjetivas e até mesmo insondáveis – resultando, desse modo, num produto que se sabe imperfeito.
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Foi assim que se fizeram grande parte dos monumentos que conhecemos, principalmente na cultura do romance, herdeira direta da ficcionalidade moderna. Por diversos acasos, os escritores foram escrevendo e formulando suas obras não em vista de uma eternidade que se sonha, mas de um real que lhes dava a linha. Desse amontoado de coisas, é que surgia, quase que bastardamente, aquilo que depois se apregoou como estilo, redenção a posteriori das infelicidades do ofício, ressignificadas e convertidas em prodígios. Ou será que Balzac estava sem pressa e que talvez Kafka tenha achado bonito deixar seus livros inconclusos? E que não venham me dizer que ele não queria que fossem lidos.
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O que ocorre hoje, aliás, de uns tempos para cá, é bastante diverso. O conceito de profissionalização tomou conta até dos autores não profissionais, fincados que foram num certo paradigma de competência, que precisam seguir. A produtividade igualmente passou a atender a um padrão, sem o qual o indivíduo que escreve não se legitima. A esse modelo, nem o marxismo consegue se opor, afinal, tudo é produção. O escritor-operário também é oriundo da técnica, e, como tal, deve perquirir a via correta do saber-fazer. Apoteose da realidade em progresso.
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Voltando ao mundo do capital, tem-se a proliferação do projeto de fabricar o autor de oficina. Mas não, vejam bem, não é nada disso que estão pensando! A ideia é tão somente fornecer coordenadas gerais, e sistematizar a conversa sobre as produções. A criatividade e autoria não estão sendo nem um pouco inibidas. Respeitamos a arte! Nosso objetivo é apenas de formular um meio de amadurecimento, para termos escritores melhores e preparados. Quem não vê isso não passa de um romântico que ainda acredita nas musas.
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O problema, como de costume, está não onde se procura. Já de um tempo Danto nos desvelou a estruturação do mundo da arte, ou seja, da instância social organizativa das produções artísticas. Esta, obviamente, sempre incluiu autores, porém estes, em outras épocas, antes de ganharem as credenciais para frequentar o salão, tinham que achar por si próprios o caminho. É isso que hoje não existe mais. Ou você usa o uniforme da firma, ou sequer chega à rua da festa.
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Em termos mais concretos e menos metafóricos, funciona do seguinte jeito: há um acadêmico – o qual pode ser muito bem um escritor que se academicizou - que definiu em técnicas o arcabouço de toda e qualquer escritura artística, sem dúvida fundamentado em pesquisa rigorosa. Surge um modelo, que em seguida passa a ser ensinado e replicado em manuais e oficinas, até se massificar entre os aspirantes a escritores, os quais, seguindo diligentemente os ditames propostos, atingem um certo grau de excelência nele com sua obra, a qual posteriormente é validada pelo mesmo acadêmico que estabeleceu tais regras. Com isso, o escritor também passa a receber o carimbo de autorizado pelo mundo da arte, ganhando o direito de proferir seus cursos sobre escrita criativa. O sistema, desse modo, reproduz-se até à totalização.
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Por certo, nada disso parece ruim, salvo para uma mente conservadora. Afinal, é verdade que os textos das oficinas saem melhores, mais bem acabados e feitos, e pode-se dizer que grandes obras foram salvas graças a esse exaustivo trabalho de depuração. No mais, cabe pensar que, historicamente, a literatura foi várias vezes marcada pelo espírito do tempo, configurado em uma estética dominante, que lhe apontou os caminhos da arte bem redigida. Logo, não se encontra aí nenhuma anomalia.
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Porém, o que se perde é exatamente o que se tenciona perder, e de cujo valor não se tem noção salvo quando já se o naturalizou como ganho. Num mundo cada vez mais estandardizado, o que se encontra inibido é o espaço do erro, e, por conseguinte, de seu potencial transfigurativo. Em sua busca por perfeição – ou eficiência, realmente agora os termos são sinônimos – a literatura não se oferece mais ao incerto, ou mesmo ao claramente aberrante, mas que pode estar dirigido de algum modo para o impulso criador. Uma personagem fora de contexto que abre tendência, uma escrita nada literária que depois se transforma em gênero. Notem que aqui não estamos nos valendo das iniciativas deliberadamente rebeldes, e sim de falhas, de deficiências que sem o crivo dos sistemas não se procurou corrigir, e que agora nos surgem com a luminosidade de seus percursos inventivos.
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Senão, pensem em um catedrático dizendo a Dostoievski – não hoje, é preciso voltar ao século XIX – que ele deveria inserir mais da poeticidade e apuro de Noites Brancas na história dos irmãos assassinos, ou a Proust que suas frases são longas e, por isso, tediosas demais – o que é verdade mesmo -. Por certo, corrigidos esses vícios, teríamos obras muito mais bem escritas, mas jamais únicas como são.
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A história, no entanto, não retrocede, tampouco se dobra aos encantos do antigo. É necessário recorrer a um outro modo de feitura e assumir o risco. Vamos ver aonde vai a escrita de fora do círculo.
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