Vez por outra, mesmo fora do circuito industrial da literatura, aparece algum escritor contando vantagem a respeito da estratégia montada desde o início para capturar o público na leitura de um de seus romances. Quase sempre, tais efeitos se mostram como tendo sido alcançados devido ao recurso à inevitável curiosidade humana, pelo qual se conta comumente, logo às primeiras frases, sobre a morte da personagem central ou algo do tipo, impedindo desse modo o leitor de sair da obra sem descobrir como se deu esse evento.
Em termos de eficácia, é inegável que o procedimento se mostra muito vantajoso, apresentando resultados bastante efetivos. Contudo, se pensarmos do ponto de vista da produção estética, este se revela bastante pobre, posto seu apelo exagerado a uma característica humana que nada ou muito pouco tem a ver com a sensibilidade artística, e que independe desta para ser bem-sucedido. De modo que, num debate mais profundamente literário, não há muito o que falar sobre as formas de seu uso, salvo para os caçadores de tiragens imensas.
Logo, para realmente gerar um debate prolífico sobre a iniciação de uma narrativa, precisamos nos voltar para o inusual, a saída inesperada que faz sentido à pergunta sobre para que serve o começo de um romance, no que a resposta nos permite enveredar por percursos sinuosos e criadores.
Ora, se o início da obra não se presta a artimanhas simplistas, e se ainda assim preserva uma grande relevância, é porque ele dá algo que, ao mesmo tempo em que fundamenta a trama, confere-lhe sua grande atmosfera, a aura sem a qual sua apreensão permanece imprecisa, ao passo em que determina também uma marca indelével na intuição do leitor.
Isso se faz de forma longa ou curta, com frases intensas ou cenas basilares, ou até mesmo com quatro ou cinco palavras que nos representem uma expressão inaugural fixadora, que nos arremesse por completo na intencionalidade da história.
O caso mais notório de uma frase: Tolstói, que, em Anna Kariênina, resumiu toda a trajetória do drama familiar, desde a aurora dos tempos até o trajeto de declínio aristocrático-burguês.
“Todas as famílias felizes se parecem. Cada família infeliz é infeliz a sua maneira”
Desnecessário dizer, a partir dessa frase-síntese, que o que será contado ali é a história de um infortúnio, e que este é dotado de uma plena singularidade, a qual diverge em muito da monotonia das famílias prósperas, de seus ideais alcançados e de seu bem-estar superior. Tudo isso está dito nesse introito, nessa premissa que é também uma conclusão, e que nos deixaria tranquilamente, caso quiséssemos, deslizar contínuos pelos desenvolvimentos de tal pressuposto, o que, no fim, resultaria num grande tratado social, ou no próprio romance de Anna e do conde Vronsky.
O começo de Anna é sobretudo uma ideia, que o romance pretende confirmar. Porém, há outros em que o que interessa é o elemento da ação. Nesse plano, difícil encontrar o que supere a diretividade que Franz Kafka teve ao principiar A metamorfose, fornecendo a senha estruturada para a constituição da narrativa que desde cedo vai ao seu ponto.
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”
Só é possível imaginar, sem nunca obter inteiramente, a sensação do grato leitor que, sem saber nada antecipadamente sobre a obra – o que é difícil para a maioria de nós, considerando o lastro que rodeia o autor Tcheco – depara-se inadvertido com essa frase terrificante, assustadora, e que o lança no cerne de toda a introspecção do enredo. Não dá para conceber que alguém, após ter lido a frase, possa ser o mesmo, pois o vigor dessa transformação abrupta, que ninguém ousa dizer se foi mais surpreendente à personagem ou a quem acompanha sua trajetória, o toma por inteiro. Desde aí, estamos todos metamorfoseados também.
Nesse momento, por mais que por alguma vicissitude sejamos obrigados a abandonar o livro, já estamos, pelo conhecimento dos fatos, tomados dele para sempre. Sim, nós sabemos. Gregor Samsa despertou e viu-se convertido num imenso inseto. Logo, a sequência da trama, ao mesmo tempo em que é preciso torná-la conhecida percorrendo-a, no que se nos revelarão maiores visões inusitadas, também se torna cedo então a nós familiar, em toda sua absurdidade e caráter monstruoso, a perseguir-nos muito provavelmente pelo restante da existência.
Diferente deste é o caminho adotado por Albert Camus no romance O estrangeiro. Nele, o que o autor procura não está diretamente ligado ao agenciamento de fatos, e não visa mergulhar o leitor no coração das trevas de suas ações articuladas, e sim fornecer a tônica completa da personagem que visa construir, e que pretende desdobrar ao longo das páginas subsequentes.
“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”
De imediato, introjetamo-nos na personalidade indiferente, inquietante e obscura de Mersault, a personagem central, e geramos por ela um interesse que nos convida a trafegar pela gratuidade de seus gestos, bem como a decifrar o enigma de sua sutil derrisão, que acompanha igualmente a pergunta: pode um homem ser de fato assim? É o deslindamento dessas dúvidas que as palavras iniciais do livro nos levam a perquirir.
Talvez a seleção de um momento tão preciso e perfurante na definição de uma personagem só encontre paralelo em Machado de Assis, que assim apresentou-nos o seu taciturno e desacomodado Bentinho.
“Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
— Continue, disse eu acordando.
— Já acabei, murmurou ele.
— São muito bonitos.”
Há os que de fato podem contrapor-se ao começo de Camus dizendo que o que ele fez não passou de uma antecipação da trama, que a frieza de Mersault para com a morte da mãe ocupa um lugar central na definição de seu destino, e que ali não há nada que difira muito das narrativas policiais. Porém, se este fosse o caso, não faria sentido existir na obra uma descrição inteira das cenas do velório e do enterro, muito mais significativas quanto a esse ponto. Camus fala do telegrama porque quer nos contar por dentro o que há em sua personagem, e assim o consegue, deixando evidente para nós o sentido de seu texto. É o que Machado também fez, embora nele a sequência do enredo ofereça nuances e complexidades sobre o Casmurro bem menos condescendentes do que a introdução que realizou.
Mas nenhum início alcança a plenitude da forma tanto no enlaçamento narrativo quanto na imersão em personagem como o de Marguerite Duras em O amante, seu livro mais conhecido. Estivéssemos aqui discutindo a obra por inteiro, colocaríamos ainda o final, que constitui igualmente um êxito de elevação da escrita. Mas voltemos ao princípio, a fim de encontrarmos ali a inteira expressão, o ajuste total e definido do que seja o romance, para o que esse parágrafo é, por si só e isoladamente, um infinito e singular relato de uma existência.
“Um dia, eu já tinha bastante idade, no saguão de um lugar público, um homem se aproximou de mim. Apresentou-se e disse: ‘Eu a conheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quando jovem; venho lhe dizer que, por mim, eu a acho agora ainda mais bonita do que quando jovem; gostava menos do seu rosto de moça do que do rosto que você tem agora, devastado’”.
Não estamos diante desde já de uma obra-prima? Não é ela logo aí o sobre-limite de uma criação que tenciona construir o cerne fundamental e metafísico dessa figura humana, ao mesmo tempo mulher, artista, memoriosa, incisiva? Não há momento no restante da trama que desfaça a luz própria desse curto trecho, ao passo que também a continuidade do romance se harmoniza inteiramente com essa luminosidade primeira, formando uma constelação única e inalcançável de grandes desígnios estéticos.
É tudo o que o começo de um romance faz, e tudo que ele pode fazer. Para além dele, há por certo todos as questões e experiências cujas abordagens nos são conhecidas. Contudo, é sempre instigante nos aproximarmos desse primeiro olhar que nos hipnotiza e conduz para o abismo de uma obra, do qual sairemos transfigurados e expandidos. É isso que nos pedem estes escritores. É isso que tentaram estes sem impasse despertar em nós desde a primeira linha.
Comments