Por Breno Lacerda
Há uma máxima essencial entre os grandes escritores: “Em literatura não se diz como foi, mostra-se como aconteceu”. Enunciado referente à técnica de composição ficcional e que funciona mais ou menos assim. Em uma narrativa, suponha-se, constrói-se uma cena e nela tem-se a pretensão de mostrar ao leitor um homem depressivo; situemos tal exemplo narrado em terceira pessoa. Em certa altura do romance, lê-se que a personagem está extremamente triste, com o coração esfacelado, sem ânimo, afogado em severa crise existencial, a sentir as dores de Prometeu. Logo se vê descrições que não comunicam nada, é como se um colega ou conhecido nos confidenciasse um problema grave, pelo qual nunca passamos, mas pela noção lógica dos fatos sabemos do perigo. No que reagimos: -Poxa, complicado. Tenho fé que tudo será resolvido, se precisar eu estou aqui. Contudo, não existe verdade nas palavras, não conseguimos nos colocar no lugar do outro. Proferimos frases de consolo por ética protocolar de tratamento, sendo o assunto esquecido em horas.
De outro modo, se o narrador reconstrói aquele momento, mostrando uma personagem sozinha numa praça, movendo-se lentamente sentada num balanço, com roupas esfarrapadas, aspecto de quem não dorme há dias, respiração profunda, sob um céu nublado de outono. Juntando-se a isso um paralelo emocional do jovem com folhas semissecas prestes a cair de uma árvore, sem recorrer a expressões adjetivas, construindo uma ponte tênue entre a sutileza artística e a interpretação do leitor, é uma forma bem mais eloquente, não?
Deve-se excetuar, é claro, a falta de dom narrativo do autor deste escrito e as possíveis pieguices dos exemplos anteriores. A intenção consiste em expor que o primeiro exemplo diz enfadonhamente sobre um estado depressivo, enquanto o outro mostra de forma latente tal patologia. A excessiva adjetivação de uma personagem terceiriza o sentimento genuíno da real condição do ser humano, demonstra rudeza no fazer literário e subestima a capacidade interpretativa do leitor, é um musical embaçado e inaudível. Agora, quando se retrata concretamente o aspecto físico, a atmosfera que cerca o indivíduo, traçando elos entre o interior e o exterior, comove, causa empatia, faz o leitor sentir na pele cada dor e angústia letra por letra. É como se fossemos colocados in loco na cena, além de indicar sutileza e esmero do escritor.
O romancista russo Liev Tolstói tem seguido exemplarmente a sentença-guia dos grandes vates da literatura. O homem de 1,81m, barbas desgrenhadas e longas como a Rússia, andando por sua propriedade rural descalço e vestido de roupas tão rústicas quanto o couro de seus animais, nas mãos rochosas lápis e papéis, escrevia com tanta sutileza e monumentalidade. Essas impressões seriam vazias e inúteis se não trouxessem um texto para exemplificar a escrita do autor referido. De sua vasta obra, que conta com Guerra e Paz, Anna Kariênina, Ressureição e outros textos universais, escolhi uma pequena novela para comentar, A morte de Ivan Ilitch, da qual ressaltarei apenas uma cena de seis páginas, seguindo as engrenagens da cena tolstoiana.
A edição de A morte de Ivan Ilitch em minhas mãos é da editora 34, tradução do excelente Boris Schnaiderman. A cena começa na página 9. Para quem não leu a história, o livro aborda a morte de Ivan e, de certa forma, sua vida. A verdadeira história subjacente a uma banalidade tão corriqueira do homem deixarei para os futuros leitores da novela. Piotr Ivânovitch, amigo e ex-colega de universidade do Sr. Ilitch, encaminha-se ao velório deste. Na residência do defunto, o ambiente de velório contamina os cômodos e o cheiro da casa, está expresso nas roupas fúnebres, nos rostos em luto de parentes e conhecidos. Apesar de ser uma ficção em terceira pessoa, o narrador nos conduz pela ótica de Piotr, as observações, medos e embaraços atravessam-no até o leitor.
Perto de se aproximar do caixão, o nosso guia se depara com um colega chamado Schwartz, um homem alongado e elegante, que contrasta com o local; pois de si emana vida e graciosidade. Em certa parte do texto, este homem chamará Piotr para uma jogatina, sem se importar com o falecimento. Diante do corpo afundado na urna mortuária, Piotr Ivânovitch perseguina-se com assombro, a imagem a poucos centímetros de seus olhos lhe causa espanto e terror, mas não significa nada a si. Depois de espiar o cadáver, ele procura a viúva para lhe render condolências. Encontra-a na frente de uma sala despedindo-se de algumas amigas. O encontro da esposa de Ivan Ilitch com seu amigo é o centro da minha impressão.
Na página 12, Prascóvia Fiódorovna, mulher baixa e gorda, convida Piotr para uma conversa em aposento reservado. Antes, o narrador descreve as vestes de Prascóvia como intensamente pretas, longas, coberta por um véu que revestia toda a sua cabeça. O compartimento de visitas estava forrado de cretone rosa, uma espécie de papel de parede cheio de rosas e cor viva, um abajur sombrio, por todos os cantos havia bibelôs e móveis excêntricos. Aqui Tolstói faz um contraste visível do ambiente fúnebre, cinzento e de predominância escura, com a sala de visitas caracterizada de cores vivas e decoradas. Não há gratuidade nessa descrição, ela se coadunará com o assunto da conversa.
Prascóvia aponta um pufe baixinho para Piotr sentar-se, enquanto ela se acomoda num belo divã a sua frente. A viúva, nesse momento, tem sua mantilha preta enganchada nos entalhes de uma mesa, Piotr tenta se levantar do pufe para ajudá-la, porém é desequilibrado pelo móvel e mantêm-se preso, a mulher tenta ajeitar sua renda, mas não consegue libertar-se inteiramente, rompendo o tecido. O assunto do encontro consiste, da parte da viúva, em saber como angariar uma pensão ou recursos financeiros decorrentes da morte de seu marido, já que o finado era juiz de instrução e servidor do Estado. Piotr observa que ela está por dentro de todos os trâmites, citando informações inéditas, seu desejo é conhecer como arrancar mais dinheiro. O diálogo é tenso, indiscreto, desconfortável e só é interrompido por um funcionário da casa, que informa sua patroa sobre a liberação de recurso para o túmulo de Ivan.
Observemos a cena acima em seus pormenores. Primeiro, a sala decorada é o inverso das exéquias ocorrendo simultaneamente na casa, é o fútil e mesquinho do coração de Prascóvia Fiódorovna, percebemos isso pelo teor do assunto. O artificial, o rosa intenso, os bibelôs cafonas, revelam seu caráter simplório e interesseiro; aspecto confirmado até o fim da novela. Os assentos demonstram uma posição de dominância da viúva sobre Piotr. Ele se senta num pufe baixinho e modesto, enquanto ela acomoda-se num opulento e confortável divã. Se traduzirmos tal momento em linguagem cinematográfica, de modo a tornar mais explicito ao leitor, o ponto de vista de Piotr (lembrem-se, o condutor) é um contra-plongée, posicionamento da câmera debaixo para cima, usado no cinema em situações de desigualdade de poder, quem está por baixo segue dominado e o de cima dita as regras. Se pensarmos que Prascóvia pauta o diálogo, interrogando seu interlocutor, pressionando-o e constrangendo-o, o recurso é perfeito. O livro de Tolstói foi escrito antes da invenção do audiovisual.
Terceiro, a manta preta da viúva engata na mesa e desfia uma parte da peça que, obviamente, representa o luto. Um utensílio da sala provocar o dano à roupa é significativo. Rasga-se o pano e dissolve-se o escrúpulo de Prascóvia, interessada nos recursos financeiros da morte de seu marido, com o corpo ainda estirado na sala. Piotr não pode ajudá-la por sua subalternidade no assunto, por isso o pufe o agarra. O fio é rompido por um puxão da mulher, que debaixo da longa vestimenta escura, em sua alma, ostentava um colorido tão vivo quanto a sua sala.
Tolstói não precisou dizer os sentimentos de Prascóvia Fiódorovna, não recorreu a frases excessivamente adjetivas e explicitas, não entrou nos pensamentos de Piotr para nos revelar seu constrangimento e desconforto. Ele usou os recursos espaciais da cena, construiu ações que expressassem a pequenez humana, a falta de escrúpulos. Não se lê explicação da passagem. Só percebi a importância desse encontro na segunda leitura da novela, pois é sútil, natural, não é forçado. Convido os frequentadores do site a visitar ou revisitar o russo cuja sutileza nos seduz a cada frase. A morte de Ivan Ilitch é um vasto painel da existência humana diante da vida e da morte, é um monumento leve e gigantesco de técnica literária. Como escreveu Nabokov: “Lê-se Turguêniev porque é Turguêniev, Lê-se Tolstói simplesmente porque não se pode parar”.
Você tem uma visão detalhista e vai além do que está escrito nas linhas. Excelente análise! Parabéns!
Excelente análise, mesmo ainda não lendo a obra com certeza deu vontade de lê-la.