Por Breno Lacerda
Puxo de minha prateleira um livro de capa negra e título em letras brancas garrafais: HAGIOGRAFIA, de Maurício Braga. Antes de abri-lo, olho-o por um breve instante, os signos dispostos sobre a cor abismal parecem girar num profundo infinito, forçando-me a iniciá-lo. Recordo-me, então, que no dia 28 de outubro de 2022 recebi por encomenda um exemplar autografado pelo autor. Posterguei a leitura durante alguns meses, minha intenção era desfrutá-la intensamente, sem as distrações da rotina de trabalho. Agora, num momento de rara folga, consegui concluí-lo e tento sanar o atraso tecendo breves considerações a respeito da obra.
Hagiografia, nome tão emblemático, seria o caminho mais óbvio para iniciar meus comentários, porém as ações da narrativa me impelem a tratar desse ponto mais à frente. É preciso destrinchar os elementos componentes do romance para depois costurá-los ao título e vislumbrar um sentido potente além do significado evocado pela palavra. O escrito de Maurício Braga pode aparentar simplicidade aos olhos menos acurados, mas há tesouros escondidos em cada banalidade, nas omissões e ruas de cada esquina. Não nos enviesemos a soldá-lo num caixão de ferro do regionalismo, a expressão e o jeito amazonenses estão colocados ali de maneira espontânea e Manaus não surge pitoresca e senil, como num outdoor em São Paulo.
Em poucos capítulos, deparamo-nos com um narrador que não tem medo de narrar. A sentença parece óbvia ou paradoxal, contudo, quando nos vem à mente as páginas de vozes tão verborrágicas, perdidas em filosofices estéreis, entendemos que narrar é um ato quase em extinção na ficção contemporânea. A criação de cenas densas de significados, o corte temporal preciso, o enfoque útil do ambiente, diálogos reveladores e, sobretudo, o espaço incompleto onde se encaixam as múltiplas interpretações dos leitores; uma narração robusta e empolgante se esmera na construção bem realizada de tais itens. Nesse sentido, Maurício Braga é feliz a maior parte do tempo, embora tenha de aparar as arestas em certos momentos, principalmente quando o poder da sugestão seria mais forte do que a anestesia da explicação.
O romance está dividido em nove capítulos relativamente curtos e narra fastigiosa rotina de Júnior, funcionário de uma biblioteca localizada no Centro de Manaus. Tudo muda quando ele conhece Ezequiel dos Anjos (grifemos tal personagem, o nome e o próprio são fundamentais aos acontecimentos futuros) que surge na biblioteca procurando livros religiosos. Tal figura logo desperta uma atração abrupta sobre Júnior. O encontro dos dois passa a ser rotineiro na trama. Ezequiel tem pendor por obras teológicas e dedica horas na leitura dessa temática. Tanto empenho desperta a atenção do bibliotecário que logo interpela o visitante: por que tanta dedicação aos teólogos? Acompanhado por um demônio desde pequeno, o voraz leitor imergia em leituras sacras para se livrar do mal que o acompanhava. A presença constante de Ezequiel na biblioteca fez nascer uma amizade entre ele e Júnior, motivada pelo hábito e estranha magnetização daquele na alma deste.
Certo dia, Ezequiel dos Anjos veio comunicar ao seu amigo que tomaria uma atitude drástica na sua peregrinação para se livrar da força demoníaca atormentadora. Iria passar quarenta dias e quarenta noites em jejum em plena floresta amazônica, emulando Jesus Cristo, que com sua abdicação no deserto venceu Satanás. Seria deixado numa barranca dessas por um guia, buscando-o no mesmo local após o prazo estipulado. Se a chegada do estranho rapaz tinha provocado uma ruptura na maçante rotina de Júnior, a partida traria de volta toda a sensação de imobilidade, de arrastar das horas, de paralisia existencial. O trabalhador da biblioteca era um homem solitário, conformista e desinteressante. Vivia longe da família e se recuperando de uma separação humilhante, na qual foi trocado por outro homem.
Os meses se passavam e não chegava nenhuma notícia do ascético leitor residente da floresta. Entre os livros, o vazio. Júnior sentia os dias passarem lentamente, o tic tac do relógio já estava condicionado às batidas do seu coração, quando de repente aparece uma moça muito bonita chamada Sofia, que logo desperta toda a animalidade do rapaz. Ela parece séria e busca jornais antigos para efetuar pesquisa acadêmica. Prontamente atendida, seus movimentos passam a ser objeto de desejos e fantasias, mas não evoluem para qualquer tipo de carnalidade.
Poucas horas depois de abrir a biblioteca, um homem de aspecto sujo e compleição rústica, vestido com calças desgastadas e camisa de campanha política, alcunhado de Bodó, informa a Júnior que depois de quarenta dias e quarenta noites, no ponto combinado de encontro, Ezequiel não aparecera. Era necessário avisar às autoridades e aos familiares sobre o seu desaparecimento. A notícia cai como um míssil no peito de Júnior, que apesar de estupefato com o ocorrido, escolhe não optar pelas alternativas lógicas, como é de seu caráter; as engrenagens movimentam-se sozinhas.
Semanas depois da notícia do desaparecimento, a vida continuava rotineiramente. Sofia se embrenhava nos arquivos da biblioteca sob os lascivos olhares do jovem bibliotecário, quando Ezequiel adentra as portas como se nada houvesse acontecido. Júnior se petrifica e sente sua alma congelar. Ezequiel tinha passado quarenta dias e quarenta noites na floresta amazônica procurando Deus, mas não encontrou nada. Na verdade, foi descoberto pelos mosquitos e necessidades mais básicas do homem. Por dias ele clamou fervoroso ao Ser supremo do mundo, mas nada veio em seu favor. Renegou a Deus. Aceitou o diabo como mestre, porém esse também não veio ajudá-lo. Desmaiou. Foi socorrido por ribeirinhos e lavado a uma comunidade. Ali, no meio de pessoas simples e modos primitivos, percebeu que Deus era um silêncio eterno, um nada.
A partir desse momento uma mudança radical se opera na vida de Ezequiel. Ao ver o belo perfil de Sofia, apodera-se dela como um animal de sua presa. O religioso deu lugar ao homem mais terreno e transitório. Júnior se surpreende mais ainda pelas alterações na personalidade do amigo, a influência do outro na vida dele só recrudesce. Ezequiel continuou indo à biblioteca. Mas suas leituras, agora, repousavam em filósofos, seus interesses versavam acerca da humanidade. O auge do seu distanciamento de qualquer grilhão religioso é marcado pela orgia preparada em seu apartamento, da qual Júnior fez parte, apesar de ter saído desse momento com estranhas sensações de sufocamento.
Cansado de ficar enclausurado em leituras e numa vida mundana individualista, Ezequiel resolveu se conectar com o coletivo. Comunicou ao seu amigo que viveria entre pessoas humildes na Comunidade dos Antípodas, ocupação de um terreno abandonado na extremidade da zona Leste da cidade. Em pouco tempo, ele ganharia posição de liderança entre os moradores do local. A figura atraente, de discurso ardente e sedutor, deu peso à figura do jovem materialista. Júnior, ainda imóvel atrás do balcão da triste biblioteca, decidiu acompanhar o amigo em tal empreitada. Primeiro firmou no seu coração passar uma temporada, mas acabou se instalando por completo, a ponto de abandonar o emprego.
A comunidade funcionava perfeitamente. Um sertão de casas paupérrimas e métodos de sobrevivência bem primitivos, contudo havia muita esperança no coração de cada morador. Ezequiel tornara-se uma voz atuante, seu aspecto assemelhava-se ao do profeta de Canudos, Antônio Conselheiro, com barba desgrenhada e exposições filosóficas ao ar livre. O amargor de suas palavras surgia quando tecia ferozes críticas à religião, os moradores frequentavam igrejas evangélicas. Júnior desfrutava o amor de uma mulher, apesar da vida árdua. O terreno é contestado pelo seu “dono” e a justiça marca a data para o desalojamento do espaço. Ezequiel incentiva o povo a resistir, a lutar e permanecer. A polícia invade com truculência e apela para a violência física. Júnior foge durante a desocupação e Ezequiel é preso. Durante seu período na cadeia, estoura uma rebelião sangrenta no presídio, e o antigo porta-voz da Comunidade dos antípodas desaparece, despertando dúvidas se está vivo ou morto. Expandi-me demasiadamente, é preciso ler a narrativa e saboreá-la sem mediação.
O narrador de HAGIOGRAFIA é solitário, espreitador e capta os fatos de ângulos inusitados. Se fôssemos materializá-los numa imagem, ela seria metonímica. Pois enquanto lemos a obra não imaginamos alguém contando suas experiências, pensamos nos olhos vivos de alguém, nos imiscuímos nesse olhar. Surge uma atmosfera melancólica, de tempo em câmera lenta, embaçada como transparência quando estamos perto de algo em chamas. Mas Júnior é a lanterna que guia o leitor pelos labirintos do tédio e da cidade de Manaus. É uma narração que instiga a pensar e não ousa em pensar pelo outro.
A meu ver, a narrativa está dividida em duas partes. O narrador caracteriza-se pela primeira pessoa, como mencionado nas primeiras páginas, porém o fio condutor é Ezequiel, com seus desaparecimentos, radicalismos e mudanças ideológicas. A primeira parte é marcada pela obsessão religiosa, pela busca de uma ascese. A segunda parte aborda a construção de uma personagem materialista, recrudescendo sua força em causas sociais. Júnior se move conforme as aparições e desaparecimentos de seu amigo, por quem tem uma atração incontrolável.
Ezequiel transita por caminhos extremamente opostos. No começo é um religioso sequioso e no fim é um materialista combativo. Entretanto, o líder da ocupação não consegue sair do idealismo, da construção mental de uma vitória perfeita, sem ajustes à realidade. Ele descobre (ou descobrimos) a duras penas, tanto na sua busca implacável por Deus na floresta amazônica quanto na sua intransigência na comunidade, que o ideal é impossível. O próprio Lênin durante o início da Revolução Russa teve de compor com os burgueses a fim de derrotar o czarismo e depois travar uma guerra ferrenha contra eles para estabelecer a democracia proletária na Rússia. Ezequiel não percebeu o poder da fé religiosa na vida dos comunitários, nem pensou em usá-la a favor de uma causa maior, afastando-os de uma verdadeira conexão, não passando de uma figura de retórica atraente, incapaz de inflamar corações.
Vale comentar sobre as salpicadas de humor presentes no livro. Momentos que funcionam como brechas de ar fresco dentro de uma atmosfera cerrada na imobilidade existencial de Júnior. Como da vez que o narrador vê sua ex-namorada na praça caminhando com um tipo esbelto e altivo, evita a humilhação se espremendo no banco, quase uma madeira. Ou quando um palavrão sai da boca de um personagem dirigido ao cobrador de ônibus e pensamos que é dito cara a cara, mas a palavra localiza-se no pensamento. São formas bem-sucedidas do novelista de oxigenar cenas sufocantes sem decair num riso destrambelhado, pastelão.
O nome do narrador e da personagem-guia têm detalhes interessantes. Enquanto surge na narração uma figura transtornada pelo demônio que o persegue desde pequeno, obcecada pelo místico, seu nome é Ezequiel dos ANJOS. Quando ele volta transformado, materialista e combativo, apenas Ezequiel. Somente no final, quando está em suspeita de estar vivo ou morto, num ar meio sobrenatural, o sobrenome ANJOS volta ao seu lugar. Júnior é uma alcunha genérica para seres filhos de alguém, como se fosse uma cópia. E tal personagem é movido pela atração, pelo magnetismo do outro, mas o próprio permanece imóvel eternamente. O próprio Pedro é o braço direito de Ezequiel em sua fase messiânica na invasão. Na narrativa bíblica, Pedro é a coluna angular da igreja, o pai fundador da irmandade pós-Cristo na terra. Os nomes dão significado à psicologia e trajetória dos personagens.
Hagiografia, a biografia dos santos. A história de homens abnegados que viveram para Deus, praticando caridade. A HAGIOGRAFIA de Maurício Braga, a meu juízo, é uma crítica à sociedade do capitalismo dependente, provocadora de imobilismos, injustiças e violência. Nela toda iniciativa é rechaçada ou transformada numa impossibilidade. Não é a trajetória de um santo, pois a revolução não precisa deles. É a anti-hagiografia de seres imersos nesses tentáculos infinitos do capital.
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