Estava por dez dias com o colégio vazio quando chegou a ordem, vinda de cima, e portanto sem nada por contestar. Os responsáveis pela baderna haveriam de ser punidos e as crianças retornariam à escola. Não era certo que elas andassem soltas por aí, não importa quão legítimas fossem as reivindicações dos trabalhadores. Estes, por outro lado, resistiam, e eis aí o motivo do uso de tamanha medida extrema.
-Eles são os próprios e únicos culpados por isso.
Leonel discordava, mas preferia não se manifestar. Há muito que tinha optado por uma vida pacata, livre de conflitos, e escolhido ignorar os livros que lera ao longo de sua existência. Assim, quando os ânimos começaram a exaltar-se, esquivou-se. Afinal, era apenas um secretário e sua classe não tinha o hábito de ser ouvida. Bom que fosse dessa maneira. Logo, mesmo quando alguém o instava de forma mais incisiva, encontrava um jeito de escapar e permanecer em seu tranquilo muro.
-De que lado você está?
-Esse não é meu assunto.
Mas isso tudo fora até aquela data, porque então precisaria agir. O diretor lhe dera ordens expressas. Todas as faltas precisariam ser lançadas. A decisão, por óbvio, não partia dele, falou. Também fora obrigado a assumir o desígnio, o qual teria de repassar a Leonel por sentimento de dever. O pacto deles enquanto servidores exigia respeitar a hierarquia.
Em princípio, Leonel não fez maior caso da questão. Foi para sua casa sem preocupações, como sempre. Afinal, tratava-se apenas de ossos do ofício, que a ele não cabia discutir. A secretaria que depois se resolvesse com os professores. Terminado o jantar, iria dar conta disso.
Marilena bateu à porta. Leonel não se exaltou. Suas visitas não eram o que se poderia chamar de incomuns.
-Soube que vai lançar nossas faltas.
-O quê?
-Vai ter coragem de fazer isso?
A pergunta, finalmente, colocou-o diante de sua consciência. Agora era inevitável dar-se conta de que a ele fora incumbida a tarefa de ser o carrasco. O executor, o homem responsável por virar a chave da cadeira elétrica. Sim, o veredicto não foi dele, mas a verdade é que materialmente era por suas mãos que os colegas padeceriam. O que Marilena viera fazer fora justamente lhe cobrar por esse ato.
-Quem mandou foi o diretor.
-Você deve saber que hoje é o último dia para enviar a frequência. Depois vai virar a folha. Também sabe que a gente ganha pouco. Se mandar nossas faltas vai ser um mês de fome. Vim aqui pedir para dizer que esqueceu e ajudar a gente.
Leonel relutou.
-Se fizer isso, posso responder a um processo administrativo.
-Que não vai dar em nada, depois todo mundo esquece o assunto.
-Não sei.
-Não seja injusto.
A palavra justiça tocara-lhe forte. Embora não fosse devotado à luta, invariavelmente prezava pela integridade moral. Despediu-se da amiga com um amargor nos lábios, que permaneceu com ele pela noite inteira.
Eram já 22 horas e ele permanecia imóvel, a tela brilhando a sua frente, esperando uma ação. Olhou para a prateleira que guardava seus livros da época de estudante. Institivamente, dirigiu-se para aquele que discutia a banalidade do mal e o prisioneiro de Jerusalém. Lembrou-se da leitura, dos argumentos, e de como durante as aulas por diversas vezes vociferou contra o burocrata alemão. Os professores chegaram a elogiá-lo por sua eloquência.
23:14 horas. O telefone toca e lhe fala o diretor. Fez o que mandei? Restam poucos minutos. Se achar que vai fazer inimigos pode usar meu login. Eu assumo a responsabilidade por isso. Só não vou fazer eu mesmo porque não tenho habilidade com o sistema. Não vai pegar nada para você não.
Ouvindo essa última frase, empertigou-se. Era como um prestidigitador que o olhavam, como alguém que apenas queria se safar de seus próprios atos. E, para sua surpresa, conformou-se em pensar que na verdade era isso mesmo. Hoje, seu salário e sua paz eram mais importantes que tudo. Os justiceiros, se quisessem, que o fossem caçar mais à frente. Digitando enter nos comandos, desligou a seguir o computador, foi beijar sua mulher e depois dormir. 23h:48. Era tarde demais para mudar qualquer destino.
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