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Contra os acadêmicos


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Ao norte no Sul global - Redoma verde. Se estamos na Amazônia, só podemos falar de floresta. Outros temas são elitismo colonialista. Assim, dizem-nos mais uma vez que somos selvagens, porém honoris causa. Senhores das águas, e não das categorias universais, não dos conceitos. Estes são relegados aos mestres da razão. Ademais, é preciso lembrar sempre de nosso anacronismo. Se eles jamais foram modernos, nunca seremos pós. Ou menos. Ou mais atrás ainda.

Contudo, o que não notam é justamente a qualidade dos fósseis vivos: todos os fenômenos colaterais, todas as mazelas do contemporâneo resplandecem em nós da maneira mais brilhante, no que podemos falar como ninguém do ocaso que outros conseguem esconder. Eis aí o privilégio dos excluídos. Somente nós guardamos o fulcro da catástrofe da autêntica condição humana.

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A universidade, portanto – esse grande monumento do saber, tão velho quanto as nossas aspirações de inteligência, chega aqui em sua exímia degradação. Nada de resquícios platônicos. Apenas a miséria de ser ela mesma, ou de imitar nomeações dos outros, o que de resto é típico de Manaus. Todos os nossos prédios têm os nomes de lugares de Paris ou do Rio de Janeiro. Logo, é impossível escapar desse mimetismo imanente. E também da megalomania de chamar universidade um punhado de cursos, os quais por sua vez não se articulam nem se deixam conversar. Mas essa moléstia não é nossa. Somos apenas a ala dos doentes isolada dos casos menos graves, a fim de chamar de sadios os demais pacientes.

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Mas deixemos de estilística, ou nenhum universitário levará a sério o presente texto - expressão essa chave para iniciar bem qualquer artigo. Falemos de idealismo, o que seria supérfluo se não estivesse proposto na forma da lei. Está escrito no estatuto da universidade que ela deve estabelecer-se como instância crítica. Mas como fazê-lo sob as amarras do corretismo? Ou ainda debaixo do engessamento provocado pelos critérios de cientificidade e método que devem ser cumpridos? Sim, fala-se em liberdade de cátedra, porém esta de nada vale quando os oponentes são os próprios catedráticos, quando estes são os grandes censores, os quais ainda têm a pachorra de disfarçar seu conservadorismo com temas da moda. Nenhuma palavra que seja onde o nosso princípio faltar, é o que dizem, e os que se arvoram a andar fora da linha padecem do mal da pretensão. Desse modo, tudo que vale é apenas repetir o caminho. Contestar? Sempre é melhor relativizar isso, ou virará profeta do exagero, fato este que seria aos olhos dos magníficos o verdadeiro crime.

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Senão, pensemos agora num encantamento. É preciso engolir a seco as mercadorias mofadas da indústria cultural. Do contrário, você estará sendo preconceituoso, e isso nunca. Somos a moral mais limpa possível

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Vejamos, por exemplo, o bruxo Harry Potter. Quantos trabalhos e dissertações já não foram escritos para falar dele, e com o propósito único de lhe dar um verniz de profundidade para legitimá-lo enquanto grande realização artística? Certamente, os detentores dos direitos autorais da personagem devem estar satisfeitos com essa propaganda gratuita. Mas, segundo dizem, o que importa é que a peça publicitária foi revisada por pares, que passaram a se sentir muito mais pós-modernos depois de seus pareceres.

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Os alunos, por seu turno, congratulam-se. Finalmente, a universidade está se abrindo, dizem, quando o que ocorre é justamente o inverso. Simplesmente, a chamada academia começa a se fechar enquanto ponto de diferença, cedendo à lógica hegemônica dos campeões de venda. E não há lugar mais onde se fale do modesto trabalho independente, onde se o ponha como objeto primeiro de investigação. Em nome da diversidade, o espaço do diverso fica curto, mínimo. Samba de uma nota só, tocado pelas mãos hábeis do mago do dinheiro. E são todos felizes assim.

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Falando em pares, não há culto da igualdade que os supere. Somente eles entre eles podem falar deles e do que os circunda. Principalmente quando o assunto é dinheiro. Afinal, a ciência não pode ser atravancada por interesses políticos. Mas tudo é política. Pelo menos é o que consta nos livros que leem.

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Onde há dinheiro público, há uma questão pública. É o que deveria valer.

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Os intelectuais – talvez não haja maior falácia do que a história de que estes desapareceram. Na verdade continuam aí, mas quem são e o que fazem passa a ser a grande dúvida. De qualquer maneira, sua função, que outrora em sonhos comunistas estaria popularizada a ponto de se confundir em número com os operários, ficou cada vez mais restrita, a ponto de não ser qualquer professor de universidade que se possa dizer “sou um intelectual”, porque tal alcunha equivale a um título, quando deveria ser um compromisso. Resta, então, a miséria dos especialistas, ou melhor, dos pesquisadores que nada mais fazem além de mapear e cumprir a salvaguarda do acervo acumulado da tradição. É uma tarefa necessária? Sim, mas está óbvio que se deve exigir-lhes mais que isso. Porém, na sofocracia autorregulada, ninguém enxerga tal premência. É cômodo e confortável estar onde estamos. Lá fora as temperaturas sobem muito.

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Uma das principais consequências da autogestão atrapalhada dos acadêmicos se observa na retroalimentação de seu sistema de titulados. Claro que esta é uma alternativa ao parco mundo do trabalho disponível, mas não deixa de ser um signo expressivo de uma questão eterna. Hoje, um recém-formado – que deveria passar pelo menos um ano tentando descobrir o que quer da vida antes de retornar à universidade e tentar de fato uma boa pesquisa – ingressa na pós-graduação, torna-se mestre e doutor, para em seguida auxiliar a preços módicos outros alunos a virarem também mestres e doutores, os quais por sua vez ajudarão outros e assim sucessivamente. Vivem disso ninguém sabe até quando, pois uma hora o ramo tende inevitável a ruir. Porém, antes que tal ocorra, o que nos cabe notar é o quanto o modo de ingresso na pesquisa foi reduzido a um conjunto de protocolos mapeáveis, uma simples técnica, e não mais a um exercício intrépido de apresentação do novo. Aliás, quanto mais conhecido for o objeto proposto de pesquisa melhor, nada pode deixar um orientador mais satisfeito. A um sacerdote diligente, não existe o que interesse mais que o culto imodificável aos velhos deuses, por mais que suas orações estejam grafadas em línguas já esquecidas.

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A função da academia sempre foi testar o novo, ou seja, diante da novidade, assumir uma atitude cética para escrutinar ao máximo se o que vem é bom. Nesse sentido, ela é imanentemente conservadora, porém nunca ao ponto de paralisar a si mesma. Contudo, agora, ocorre um fenômeno estranho. Não há mais problema de novo e velho, e sim burocrático. Tudo pode ser aceito, contanto que esteja inserido no formato. Retira-se desse modo a expectativa crítica, e a universidade se torna com isso uma instituição anódina, incapaz de provocar o ódio da vanguarda ou o gozo dos antigos. Quem usa a roupa certa entra na festa. Não é preciso mais sequer saber a senha.

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E qual o uniforme padrão dessa grande confraria? Não há dúvidas de que é alinhado pelo referencialismo. Ao final, é tão somente esse suprassumo da vida acadêmica, que conseguiu atingir as mais diferenciadas esferas da cultura, o que importa. Se as ideias se organizam ou não, se têm vocabulário adequado ou não, é o de menos. O que vale é que citem, citem muito, e quanto mais arqueológica a citação, melhor fica o texto. O privilégio de não vestir a indumentária pertence apenas aos deuses, que são os que já citaram demais. Meritocrático, sem dúvida. Mas a meritocracia é sempre uma mentira cansativa.

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Agora, visemos com calma essa instituição tão canônica que até parece natural, e proponhamos a seguinte pergunta herética: para que serve mesmo uma defesa de tese ou dissertação?

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O trabalho de defesa não vale o menor esforço. É a apoteose da exaltação dos torturadores e seu festim inútil. Diz-se que poderia contar como publicidade de um trabalho e uma maneira de prestar satisfações à comunidade, o que talvez valesse em tempos antigos, de menor interação comunicacional. Hoje, tanto melhor seria utilizar-se de outros meios mais duráveis e explicativos - vídeos, transmissões sonoras, o que fosse – se este é mesmo o objetivo do evento.

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No mais, a sessão é quase sempre patética, e o público externo interessado não costuma passar de meia dúzia de pessoas. A necessidade de resposta rápida do pesquisador aos questionamentos da banca não passa de um insulto à reflexão. Fosse o foco realmente o trabalho e não o exibicionismo, por certo as questões teriam sido indicadas antes, assim como a própria avaliação. Secundarismo da pesquisa e fetiche de eruditos, eis as marcas que tanto falam pela boca dos banqueiros.

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Em conclusão, é preciso dizer com honestidade. Grande parte das pesquisas não diz rigorosamente nada. São apenas requisitos técnicos para o término de um curso, etapas protocolares que fazem impor os ritos, mas sem substância, e todos sabem disso, inclusive o pobre autor. Fazer com que pesquisas tais ganhem lume e pompa não passa de uma hipocrisia contraproducente. O pesquisador não quer falar, e os presentes não querem ouvir. Melhor seria encerrar o mais rápido possível o suplício, ou ainda abortá-lo desde o começo.

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Todas essas observações, todos esses ínfimos dizeres não passariam de resmungos se não se sustentassem num princípio material objetivo, que é o de que a universidade precisa cumprir o seu papel, ou seja, fazer aprofundar o conhecimento em suas mais variadas esferas e fornecer interpretações críticas do real. O que não atende a esse fim, ou o que se desviou dele em algum momento, precisa ser iconoclasticamente suprimido. Qualquer mito, conforme avança, precisa ceder lugar à história, ainda que seja para esta forjar seus novos mitos. Há, por certo, mitos inofensivos, cuja permanência não tem maiores repercussões. Mas aqueles que entravam a tarefa precípua da academia devem perecer.

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Quem leu o título acima do presente texto, tão evocatório de uma tradição erudita, provavelmente está agora decepcionado com essas meras notas avulsas. Mas a decepção talvez seja no momento o de que nossas esperanças precisam. Quem sabe desse modo, com todos nós insatisfeitos, alguma criação destruidora possa surgir. Institutio quaerens intellectum. Não é o que digo.

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