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As musas de Gabriel Albuquerque em Diálogo dos afetos


Por Breno Lacerda


Era comum aos poetas da Grécia Antiga a evocação de divindades no início de seus poemas, suplicando-lhes força para terminar tal empreitada. Homero pede à musa para cantar a fúria de Aquiles, o mortal Pelida; recorre a ela novamente para lhe contar acerca do retorno de Odisseu a Ítaca. Pôr os versos no altar e consagrá-los às musas tornou-se quase uma estrutura obrigatória. Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Terpsícore e Urânia, as filhas de Zeus e Mnemósine e patronas das artes e ciências. Figuras simétricas, belas, douradas, de um canto suave e equilibrado, a simbolizar a perfeição clássica. Em Diálogo dos afetos, primeiro livro de poemas de Gabriel Albuquerque, as beldades olímpicas são preteridas na busca de uma nova inspiração.


O livro está dividido em três partes, a saber: Origens (Manaus – 70), Circunstância e Outras terras. Não há um plano linear ligando os poemas, eles se intercruzam entre si. Antes de entrar na obra propriamente dita, o leitor atento perceberá um pequeno poema antecedente ao sumário. Ali, são evocadas três figuras-chave que reverberarão por todos os versos. Cloto, Láquesis e Átropos – as Moiras. Os gregos consideravam-nas entidades originárias, existencialmente mais antigas que os titãs do Olimpo, filhas da noite. Eram as fiandeiras do destino de homens e deuses, nem estes últimos poderiam desacatar o veredito das Moiras sem a consequência de um desequilíbrio cósmico. Na grande máquina de tear, Cloto tecia o fio da vida, Láquesis esticava e enrolava o tecido e Átropos cortava o fio da vida. Eis as musas de diálogo dos afetos, as cicerones que nos guiarão imperceptivelmente por toda a obra.


Os poemas de Gabriel Albuquerque se afastam da inspiração apolínea, do ideal de perfeição marmórea, do sobressalto de cores reluzentes na construção de suas imagens. Surge o desequilíbrio na construção de tensões, o ritmo é metálico e dissonante, concernentes ao homem sem arrimo da modernidade capitaneada pelo capitalismo. As Moiras fiam o tecido da vida do eu lírico, que transita entre as reminiscências do afeto perdido e o prosaísmo da sociedade contemporânea. Os gregos acreditavam no destino pré-fabricado, embutido no seu existir a partir da primeira respiração no mundo. Sófocles termina Édipo Rei com os seguintes versos: “Sendo assim, até o dia fatal de cerrarmos os olhos/não devemos dizer que um mortal foi feliz de verdade/antes dele cruzar as fronteiras da vida inconstante/sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento”. Da leitura deste trecho pode-se entender a porção trágica que a vida humana tem na visão sofocliana e o destino pré-determinado e cego aos olhos mortais. Contudo, em Diálogo dos Afetos, a ideia de cristalização da vida, das cartas marcadas, é afastada. As Moiras tecem uma intricada manta de sentimentos, emoções, lembranças, relacionamentos, que se fazem e se desfazem como o casaco de Ulisses nas mãos aflitas de Penélope.


A ideia do tear, do tecido, percorre toda a obra. Não de maneira explicita, mas subentendida em alguns momentos, em outros invisíveis, todavia imbuída nos versos semelhante aos fios de uma peça de roupa. O diálogo, dentro do livro, é uma espécie de tecido da vida do eu lírico, que une a trajetória que percorre os medos e a ingenuidade da infância ao tédio da rotina da vida adulta, estabelecendo uma comunicação entre pedaços da existência esfacelados pelo tempo que somente a poesia põe em conversa. Diálogo também há entre o poeta e os autores reconhecidos em sua escrita, entre o berço Amazônia e as experiências em São Paulo, mas essa parte já foi bem desenvolvida por Edilamar Galvão no posfácio do livro; passemos às considerações a respeito dos poemas distribuídos nas divisões da obra.


Origens (Manaus – 70)


Aqui temos cinco poemas: Sonho com o pai, Álbum, Cromos, Encantamento e Agosto. Aqui, o eu lírico entra num mundo que já não pertence mais a ele enquanto experiência atual, o acesso é via memória, recortes de fotos, sonhos e recordações tristes e líricas. Analisando os poemas de forma conjunta, é interessante como a vírgula é utilizada. Geralmente trabalhada para organizar períodos fora da ordem direta, separar enumerações de palavras de mesmo valor semântico, em Origens ela aparece para marcar uma separação brusca, o distanciamento irreconciliável entre afetos. Como estamos falando de um mundo de reminiscências, de cenários oníricos, a pontuação é escassa, pois tem o propósito de seguir a sintaxe da psique, que flui como um rio, conforme falou William James.


Transitando entre imagens da infância e a visita respeitosa a membros da família, acompanhamos um eu lírico que se rende aos momentos da meninice, de balanços de redes a mergulhos nos camburões cheios d’água, onde o céu era admirado como um deus. A meu ver, o poema Agosto traz as mais belas imagens de Origens, remete o leitor a uma época de reciprocidade entre o homem e a natureza, é um poema quase bucólico. É um raro momento em que uma claridade estranha adentra os versos de Gabriel Albuquerque.

“Havia um calor

Que nos amolecia.

O chão era róseo

De flores de jambo

E se o vento

Soprava forte

Caíam mangas”


Os pontos marcam uma pausa preguiçosa do repouso, longe da lógica de produção capitalista. Aparece uma vírgula em: Nas nossas peles brilhantes/De suor, de sol, marcando um ritmo de descanso e não um corte abrupto de laços sentimentais.


Encantamento é o poema em que pela primeira vez a pontuação é usada de forma convencional. O eu lírico nos relata a história da tia que perdeu a filha e desde então passou a ter sonhos com a menina. A vírgula marca a separação brutal entre mãe e filha, viva na lembrança da voz poética, um abismo tão grande, separando afetos supremos.


“Nunca mais viu a filha,

Acenderam-se velas.

Vieram homens com lanternas

Nunca mais viu a filha.


Circunstância


A segunda parte do livro, a meu juízo, marca a perda da inocência, o mundo onírico e de reminiscências materializa-se na mais pura rotina, no desvelamento do vazio humano, na ausência das flores de jambeiro caídas ao chão. Estão reunidos aqui os poemas: Descaso, Range rede, Manhã, Clamavi, Dezembro, A notícia, Verborreia, Sazão, Watching TV, Outro poema ruim e Penélope. Se nos versos anteriores a temática era o sonho, a lembrança, a ausência dolorida de um ente que se foi ou os momentos líricos de tardes calorosas, aqui, o tédio e as obrigações de um mundo prenhe de exploração inundam as imagens poéticas.


A pontuação já é mais gramatical do que nas Origens, porque o mundo é muito mais marcado pelo tempo do trabalho, do corre-corre da vida urbana cinza. O léxico é mais pesado, mais lúgubre, suscinto, desencantado. Não há descanso para fruir o ócio, o tempo funciona para repor as energias para o trabalho outra vez, como se pode ver nesses versos de Manhã:

Avidez

Acordo

Lavo-me, miro um

Rosto a cada dia

Escalavrado

Lavoura do absoluto

Esse rosto meu


As palavras estrangeiras também chegam para demarcar a influência da cultura industrial na vida do eu lírico. Ele vive cansado e mecanizado em seus gestos, não existe espaço para o sonho. Os vocábulos ternos somem e o verbo se estrega e transforma-se em Verborreia, título de um dos poemas do livro, quando a palavra não liberta, mas asfixia como uma doença.

Minha boca

Está entupida

Um bloco de fezes

Pesa dentro de minha boca

E os meus lábios

(costurados)

Nada dizem


O eu lírico percebe que a condição do tempo, espaço e da estrutura econômica que o circunda está aprisionada a um sistema escravizador, compulsório; viver de poesia nesse mundo é morrer aos poucos até não sobrar nada. É uma época da falência das palavras, é o lugar do homem como máquina na engrenagem dos poderosos. Mas o último poema da coleção, Penélope, termina com uma mensagem de esperança: a poesia da liberdade chegará um dia nas ítacas dos homens.


Outras terras


É composto por tais poemas: Os dias felizes, Os outros dias, (da poesia), (do poeta) e Tecer. Nesta última parte do livro, percebemos um eu lírico mais consciente do que é o mundo, capaz de vislumbrar uma forma de viver, mesmo sabendo de sua finitude perante o universo.

Vou morrer, pensei.

Vou morrer.

E voltei a dormir.


O eu lírico não se apavora com a iminente chegada da morte; já que ela é inevitável, eu volto a dormir. Em Circunstância, uma constatação de tal grau levaria a uma angústia suprema, mas o mundo desvelou-se versos atrás. Apesar dos momentos tensos de alguns poemas, a poesia volta tênue a figurar nas páginas. Há uma consciência acerca do significado da poesia para o mundo (da poesia) e do fazer poético como um ofício necessário, mas que pode perder-se nas ilusões de prêmios e famas. O poema que fecha o livro traz à tona o sustentáculo do livro, Tecer.

É uma ciência antiga

Mas tão viva como amar

O fazer com as próprias mãos.


Tecer o tecido da vida fiado por nós mesmos. Do nascer ao último ato consciente antes da morte estamos construindo o tecido da vida, dando um sentido ao universo sem rosto que nos intriga todos os dias, o fazer com as próprias mãos, como diz o poema.


Diálogo dos afetos


Publicado pela Editora paraLeLo13S, o livro de estreia de Gabriel Albuquerque foi vencedor do prêmio literário Cidade de Manaus em 2019. O título do livro refere-se aos diálogos travados como fios entrelaçados de uma roupa existencial entre as lembranças da infância, as angústias do período da vida adulta inserida na sociedade capitalista e a fase da maturidade, que desvela o mundo como ele é. As três partes do livro travam intenso diálogo, entre afetos de saudade, espanto, angústia, tristeza e esperança, por isso as musas de Gabriel Albuquerque são as fiandeiras do destino, que lhe ensinaram a tecer com as próprias mãos.



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