Por Breno Lacerda
O nome de Júlio Cortázar está arelado indelevelmente ao realismo maravilhoso. Junto a Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa, formam a trindade de uma explosão da literatura hispano-americana no mundo. Transgressor por excelência, produziu obras inovadoras e desobedientes, seguindo pouco ou nada as poéticas da arte narrativa. De sua lavra, Jogo da Amarelinha ou Rayuela, no original, tem-se um romance potente, fragmentado, resultado do experimentalismo intenso do autor. Ali está o máximo e a síntese do escritor argentino. Não se pode esquecer do contista hábil, conciso, que perturbou a todos com suas formas móveis de narrar, transformando duas ou três páginas em uma fonte inesgotável de história.
O Jogo da Amarelinha foi a primeira obra que li de Cortázar. Depois tive contato com alguns de seus contos, os quais me intrigam até hoje pelo prazer e o espanto da leitura. Sempre o tomei como autor de enredos insólitos, uma figura desafiadora e iconoclasta. Mas o conto Reunião surpreende por se tratar de uma temática que imaginava alheia a ele. Pura ingenuidade. Sua produção ganhou êxito justamente na época mais opressiva da parte sul do continente americano, impossível uma consciência como aquela passar incólume às efervescências sociais de seu tempo. Não podia ser diferente, vi-me diante de um dos contos mais tensos da minha experiência com a literatura em língua espanhola. Uma história engajada e combativa em todos os sentidos.
A história nos mostra alguns homens exaustos chegando a uma espécie de selva ou mata inóspita. Antes disso, o narrador relata as dificuldades passadas navegando dentro de uma lancha desconfortável. O objetivo era chegar a La Sierra, lugar onde empreenderiam seus planos de combate. Os amigos são caçados como animais entre o matagal do ambiente, o inimigo é impiedoso e não dá trégua. Helicópteros armados de metralhadora furam as folhas das árvores, soldados rivais cercam o local e atmosfera é de morte. Os perseguidos estão em frangalhos. Feridos, famintos, desarmados, só a coragem os põe de pé. O conto é altamente tenso, sério. Cortázar cria uma atmosfera arrepiante, quando encurrala seus protagonistas com poucos recursos e brutaliza seus algozes numa busca feroz e desleal, o leitor sente na pele os efeitos desses recursos.
Imbuídos em uma névoa de tensão, a qual arrepia a pele e gela a coluna do leitor, a narração quebra essa atmosfera ao revelar o narrador-personagem revirando o baú de suas memórias; todo bonachão, deitado na grama a olhar para o céu como quem assiste a um filme de si mesmo. Por pouco tempo, logo a perseguição é posta aos olhos de novo. Há mortes, companheirismo, luta pela sobrevivência e obstinação em cumprir a missão final. A jornada desses camaradas está prenhe de reviravoltas, cheia de humanidade para com o próximo, pode-se ver isso quando se ajudam mutuamente. O diálogo que o narrador faz de sua sobrevivência com as partituras de Mozart é interessante. Cria a imagem ou remonta os altos, baixos e graves de uma interpretação para piano, semelhante das personagens.
Júlio Cortázar, de forma sensível, mas muito aberta e firme, remonta as dificuldades que os guerrilheiros cubanos enfrentaram para florescer a revolução na ilha. A fuga, as mortes, a guerra, a fome e a esperança estão impregnadas nesse conto. Esta afirmação vem calcada em conhecimentos prévios da história da guerrilha em Cuba. Porém em nenhum momento o narrador nomeia o local e isto tem um propósito. A intenção é universalizar a América-Latina, tornando-a uma grande facção de oprimidos contra o imperialismo dos Estados Unidos da América que devasta há anos os países em desenvolvimento. De 50 a 70, os movimentos revolucionários pulularam por todo o continente, sempre embasados em um ideal socialista, sonhando criar uma comunidade fraterna e sem desigualdades. Excessivamente utopista, mas uma via possível ante a opressão econômica e militar das grandes potências.
No final do conto, sabemos que o narrador é Che Guevara, a citação inicial é dele. É certo também que Luís encarna a figura de Fidel Castro, vide a combinação feita entre eles de não se tratarem por seus nomes verdadeiros, mas a importância dada a ele é digna do líder de todos. Isto não é dado de graça, o narrador vai diluindo essas informações através de suas frases, sugere mais do que afirma; quase como alegoria dissolvendo-se em um horizonte de palavras. Os companheiros chamam o narrador de “che”, o que remete ao revolucionário. “Che” é uma forma de tratamento genérica equiparável ao “mano” dos manauaras ou ao “meu” dos paulistas. Ou seja, ele esconde sempre deixando pistas minúsculas ao leitor, grãos de certezas.
É uma narrativa que surpreende o leitor pelas questões expostas nestas considerações. Aqui se tem um Cortázar engajado, comprometido com seu tempo e fazer de escritor. Não se furtou a responder às questões espinhosas de seu tempo, fora e dentro da literatura. Desta leitura, se outrora há espantado com suas realidades mágicas, a história combativa e eletrizante é capaz de causar de tensões e arrepios no leitor.
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