No tempo em que era um presunçoso e arrogante aluno de filosofia - éramos todos desse jeito - tínhamos algo que hoje costumo chamar de currículo mínimo das humanidades, composto pelas obras filosóficas, literárias e fílmicas que deveríamos conhecer, ou do contrário estaríamos fora, párias largados no limbo do esquecimento e da falta completa de ilustração e entendimento de mundo. Claro, isso hoje sem dúvida não existe mais, pois a indústria cultural venceu e o que interessa é se você domina os nomes de doramas, animes, séries ou qualquer coisa do tipo. Cada geração tem suas manias inerentes.
Como nos sentíamos um pouco rebeldes, nosso currículo não envolvia os gigantes máximos - Dostoievski, Tolstoi e Kafka eram muito óbvios para figurar na lista – e sim aqueles que achávamos mais contemporâneos e subversivos. Daí vinham Orwell (até hoje me lembro de quase ter apanhado quando disse não ter lido A revolução dos bichos), Camus, Sartre, Genet, Joyce. No cinema, como se tratava de uma arte mais recente, ficávamos entre o novo e o velho, mas sempre do limite para fora do comercial: Kubrick, Godard, Kieślowski, Bertolucci. A música invariavelmente era o Rock. Sim, nós éramos um lugar comum no cenário pseudointelecutal, mas havia uma genuína diferença na época em ser assim.
Trago essas parcas e erráticas memórias não para exaltar um passado supostamente glorioso, e sim para prestar homenagem a um dos nomes próprios decisivos de nossa formação. Ali, entre citações e dizeres verborrágicos, a figura de Kundera e de A insustentável leveza do ser sempre ecoou entre nós como o mais fino acabamento do projeto nietzscheano, a sua autêntica conversão em imagens moventes, o desenho da profundidade em ebulição. E era inevitável que, quando alguém tivesse acabado de lê-lo, corresse para nós cheio de ímpeto e de vida, e viesse reiterar a descoberta que quase simultaneamente fazíamos, no que concordávamos eufóricos - apesar de fingirmos que não nos empolgava tanto - para logo em seguida dizermos em tom solene que o passo à frente era ver o filme de Kaufman.
A esse Kundera que tanto nos ensinou e ergueu com sua arte nossa força de existência, presto aqui tributo. Foi graças a sua obra e de outros como ele que conseguimos não apenas ser meninos ingênuos eufóricos e pedantes, mas sim meninos ingênuos eufóricos e pedantes porém alegres e afeitos à agudeza do amor fati, e podemos lembrar com uma revivescência não nostálgica esse mágico instante em que tornar-se o além-do-homem nos era perfeitamente possível.
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